"Ser marxista é, antes de mais nada, ser anticapitalista, ou seja, lutar pela construção de uma sociedade sem classes, que suprima a exploração do homem pelo homem e a propriedade privada dos grandes meios de produção, criando condições para que as relações entre os homens sejam fundadas na solidariedade e não no egoísmo do mercado. Claro, ser marxista não é repetir acriticamente tudo o que Marx disse. Marx morreu há cerca de 120 anos e muita coisa ocorreu desde então. Mas, sem o método que ele nos legou, é impossível compreender o que ocorre no mundo. Ele nos disse que o capital estava criando um mercado mundial, fonte de crises e iniqüidades, e nunca isso foi tão verdadeiro quanto no capitalismo globalizado de hoje. Falou também em fetichismo da mercadoria, na conversão do mercado num ente fantasmagórico que oculta as relações humanas, e nunca isso se manifestou tão intensamente quanto em nossos dias, quando lemos na imprensa barbaridades do tipo 'o mercado ficou nervoso'." (Carlos Nelson Coutinho)

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Direitos Humanos e socialismo: Marx e cristianismo. (Parte final)

Direitos Humanos e socialismo: Marx e cristianismo. (Parte final)

Jung Mo Sung é diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.

Comecei esta pequena série de artigos sobre "Direitos Humanos e socialismo” –que termino com este–, citando uma afirmação de Franz Hinkelammert: "Se hoje dizemos que outro mundo é possível, se queremos uma sociedade alternativa, ou o socialismo no século XXI, então, creio que é fundamental partir sempre dos direitos humanos. Os direitos humanos não são simples moralismo. O reconhecimento dos direitos humanos é mais bem a condição de possibilidade de uma sociedade alternativa e uma sociedade sustentável, a base de toda sociedade que podemos considerar que vale a pena sustentar”.

No passado recente, as lutas por superar o capitalismo foram sempre motivados por implantação de um sistema econômico-social-político nomeado de socialismo. Esse sistema servia de critério para discernir tipos de lutas aceitáveis e os não; enquanto que a noção de dignidade humana permanecia meio na sombra. As reflexões desenvolvidas aqui foram no sentido de propor a defesa da dignidade humana de todas as pessoas anterior e superior a qualquer sistema social ou legal. Isso não quer dizer que não se deva pensar em sistemas sociais concretos, pois sem elas a vida humana não é possível, portanto a defesa da dignidade e direitos humanos. Mas nenhum sistema social pode ser absolutizado.

Nessa luta, o sonho de "um novo mundo e novo ser humano”, com forte ênfase nesse "novo”, nos leva muitas vezes a imaginar a construção de um mundo sem contradições inerentes a todos os sistemas sociais e um novo ser humano sem conflitos e contradições internas e nas relações sociais. Quando se confunde essas imaginações utópicas com projetos sociais possíveis, cai-se na ilusão (idealista) de que podemos construir o que transcende a possibilidade humana; ilusão essa que nos conduz a caminhos equivocados e até perversos.

Quando se luta por sociedades impossíveis (como, por ex., um mundo globalizado sem relações mercantis, porque não queremos nenhum tipo de concorrência), não se constrói o que é possível. Quando se sonha com ser humano "perfeito”, não se ama pessoas reais, imperfeitas como são, com seus egoísmos e interesses, mas também com desejo de solidariedade.

Pensar e lutar por outro mundo a partir deste que temos é fundamental. Assim como é fundamental que aceitemos a condição humana como ela é. Marx, na sua maturidade, ao falar do Reino da Liberdade, escreveu: "Assim como o selvagem tem de lutar com a Natureza para satisfazer suas necessidades, para manter e reproduzir sua vida, assim também o civilizado tem de fazê-lo, e tem de fazê-lo em todas as formas de sociedade e sob todos os modos de produção possíveis.” Não há e não haverá modo de produção possível em que seres humanos não tenham a necessidadede produzir, distribuir e consumir bens materiais e simbólicos para satisfazer suas necessidades para viver. Não haverá um "reino”, por mais livre que seja, em que a liberdade não dependa também da forma como se soluciona os desafios econômicos da produção de bens necessários.

Além disso, por mais que consigamos criar sociedades mais justas e livres, o ser humano continuará sendo um ser com desejos e necessidades que entram em conflito com desejos e necessidades de outras pessoas. Isso é assim porque não temos conhecimento perfeito da realidade, nem a nossa razão consciente domina completamente nossa vida (Freud já mostrou a força dos desejos inconscientes), e, talvez a característica mais esquecida nas nossas discussões, o nosso desejo está sempre marcado pela imitação do desejo do outro. Desejamos ter o que outro tem ou é. (O décimo mandamento de Deus é sobre isso). Desejo vem ligado à rivalidade. Daí a importância que o cristianismo e outras tradições espirituais dão à reconciliação.

Somos seres que desejam mundos plenamente harmoniosos, soluções perfeitas, infinitas. Quem não reconhece a impossibilidade de construirmos o infinito com passos finitos, humanos, acaba por deixar de amar seres humanos como eles são, de defender os direitos humanos de seres humanos com seus defeitos incorrigíveis; de lutar por um mundo que continua "defeituoso”, mas melhor.

Nessa nossa luta, precisamos lembrar o que dizia José Comblin: "A novidade do cristianismo não é o desejo do infinito, é o amor das coisas finitas, o amor das coisas que passam. (...) a fuga para o eterno e o absoluto é um truque da consciência para esconder uma fraqueza. (...) Pois, para um homem é um desafio ter que enfrentar permanentemente a fragilidade de sua condição e a incerteza do que é e pode”.

Direitos Humanos e socialismo: que mundo? que ser humano? (V Parte)

Direitos Humanos e socialismo: que mundo? que ser humano? (V Parte)

Jung Mo Sung é diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
 
 
No artigo anterior, eu defendi a ideia de que devemos elaborar projetos de uma sociedade alternativa a partir da realidade que temos hoje, em uma tensão entre o que imaginamos como utopia e a realidade atual. E de que não devemos cair na "tentação” de desenharmos a nova sociedade somente a partir de nossos desejos ou crenças, como se tivéssemos à nossa frente um papel em branco. Com isso, concluí dizendo que devemos enfrentar uma contradição fundamental na nossa luta: o fato de que não há como organizarmos o sistema econômico em escala mundial sem os mecanismos de mercado e a constatação de que o mercado tem a tendência interna de acumulação de riqueza em mãos de poucos, de excluir os pobres e de colocar em ameaça o meio ambiente.

Neste artigo, quero propor uma reflexão sobre um outro tipo de contradição que devemos levar a sério: a contradição humana.

Muitas das propostas de uma nova sociedade– do tipo uma baseada na solidariedade, sem relações de concorrência, na igualdade, na harmonia entre seres humanos e entre humanos e a natureza –pressupõe uma noção de ser humano muito otimista. Parece que após a "libertação” ou "revolução”, na nova sociedade as pessoas deixariam de ser contraditórias: não teriam dentro de si nenhum sentimento de concorrência ou inveja, estaria isento de egoísmo, rivalidade e o desejo de possuir o que é dos outros, de domínio sobre outros e sobre a objetos do meio ambiente.

A descrição do "novo mundo” é tão atraente e fabuloso que nos encantamos com ela e passamos acreditar que é possível, pois é desejável. Contudo, nem tudo o que é desejável é possível. O ser humano necessário para que uma sociedade funcione assim parece-me muito irreal, pouco humano, demasiadamente angelical. O pressuposto antropológico subjacente ao desenho dessa nova sociedade parece cometer o mesmo equívoco de muitas antropologias do mundo moderno: o de que o ser humano é, por sua essência, bom, puro, plenamente solidário e harmonioso. E é a sociedade que o corrompe. No nosso caso, a sociedade capitalista que o corromperia e o fim do capitalismo traria de volta esse ser humano "puro”.

Oposto a essa visão extremamente otimista, o neoliberalismo pressupõe uma noção totalmente negativa do ser humano: um ser totalmente egoísta, incapaz de solidariedade genuína, movido somente por interesses econômicos. A partir dessa noção, o neoliberalismo propõe que as metas sociais e o bem comum sejam tiradas da discussão política e deixada somente para os mecanismos inconscientes do mercado, o famoso "mão invisível” do mercado. Não é verdade que os neoliberais não se preocupam com solidariedade ou bem comum. Eles se preocupam sim, mas só não acreditam que o ser humano possa realizar isso por causa do seu egoísmo fundamental. Por isso, defendem que todas as questões ligadas ao bem comum sejam deixadas na mão do mercado, com sua eficiência que nasce da concorrência. Para os neoliberais, o ser humano é egoísta, mas o mercado transforma esse egoísmo em bem comum. O mercado salva!

Devemos superar esses dois extremos, dois equívocos antropológicos muito presentes no nossa tempo. O ser humano não é plenamente solidário, nem completamente egoísta. Somos seres contraditórios, com egoísmo enraizado em nós, mas com potencial de solidariedade; movidos por inveja, mas também por gratuidade; desejosos do bem comum, mas também movido por interesses próprios; seres que se realizam através de ações e trabalhos, mas que também é regido pela lei do menor esforço. Reconhecer e respeitar essa condição humana é também uma forma de defesa dos direitos humanos na luta por uma nova sociedade.

Lutar por ou exigir uma nova sociedade que pressupõe que todos os seres humanos sejam heróis ou anjos é negar a condição humana. Por isso, fadado ao fracasso, porque desumano, irreal. A construção de nova sociedade mais humana e justa só será efetiva se levarmos em consideração a realidade humana como ela é, naquilo que tem de mal e naquilo que tem de bom. É com o ser humano "real”, não o idealizado, e a partir das atuais condições da economia de mercado global é que poderemos construir uma outra sociedade mais justa e humana.

Direitos Humanos e socialismo: sonhos e o mercado (IV parte)

Direitos Humanos e socialismo: sonhos e o mercado (IV parte)

Jung Mo Sung é diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
 
 
No artigo anterior, defendi a tese de que o projeto de uma sociedade pós-capitalista não deve ser pensado em termos de estatização de toda economia –como foi o modelo soviético–, mas deve ser um "sistema social que coloca no seu centro os direitos sociais de todos os indivíduos. Por isso, um sistema que se reconhece relativo e subordinando à realização dos direitos humanos, um sistema que está em permanente processo de revisão, crítica e reformulação”. Assim, o "socialismo” não seria mais identificado a um modelo institucional de organização do Estado e da economia –como foi por ex, o da estatização completa no modelo soviético–, mas sim com um projeto de sociedade fundando em uma tensão entre o critério último da busca da realização de direitos sociais e humanos de todos os indivíduos e o "desenho” concreto de sociedade sem uma definição a priori.

É claro que essa ideia geral, por mais importante que seja, não é suficiente para guiar lutas sociais e políticas concretas. Pois, sem a visão de um "modelo de sociedade”, não há como pensar a direção e os passos da caminhada. E é essa mesma visão que possibilita dar maior concretude a horizonte de esperança que alimenta as comunidades e grupos em luta.

De um modo bem simplificado, podemos dizer que há duas maneiras fundamentais de se pensar ou criar esse projeto de sociedade alternativa. A primeira é a de "desenhar” esse projeto a partir de alguns valores, crenças e ideias sobre o que seria o ideal. Por ex, há grupos que pregam que estamos indo, ou que devemos ir, em direção a uma grande harmonia cósmica entre seres humanos e a natureza/cosmos; outros que defendem uma sociedade sem exploração econômica, por isso, sem propriedade privada e mercado.

A partir desse projeto, olham à realidade para criticar –tanto a situação quanto aos grupos que estão lutando– e propor caminhos de superação da situação. Mas, como o "desenho” do projeto é muito genérico, abstrato, fica muito difícil saber qual o caminho concreto construir. E quando perguntados sobre a viabilidade desses projetos históricos grandiosos, as respostas costumam ser evasivas ou se introduz noções "estranhas” à política como: "a histórica caminha para...” ou "a evolução está nos conduzindo o cosmos e a humanidade à plenitude...”. Noções essas (o espírito que move a história, evolução cósmica, etc.) que parecem substituir ou são usadas como sinônimos da ideia teológica de que Deus conduz a história ao destino pré-estabelecido por ele.

Esse tipo de argumentação seduz porque, com a noção de que há uma força sobre-humana nos conduzindo à plenitude e superação de todas as injustiças, cria esperança no futuro e compensa em parte a sensação de impotência diante da dominação capitalista global. O problema é que, se essa força conduz necessariamente a história e o cosmos a um destino, as nossas ações são desnecessárias. Pior, as injustiças do passado e do presente também foram partes dessa condução, portanto, não eram de fato injustiças.

Além disso, esses discursos grandiosos não nos dão pistas de ação, a não ser pregar essa nova consciência, e nos levam muitas vezes a criticar e opor a ações concretas possíveis que estão sendo feitas porque essas não levariam a essa plenitude.

Outro modo de pensar a sociedade alternativa é a partir das contradições da realidade em que vivemos. Vivemos em uma economia capitalista globalizada, sob a hegemonia do capital financeiro e dos grandes conglomerados, que é apresentado pelos ideólogos do sistema como não havendo alternativa a ela e que todas alternativas propostas não passariam de sonhos irrealizáveis. Além disso, bilhões de pessoas mais pobres desejam entrar no sistema, realizar o sonho de consumo, e não lutar por outra sociedade.

Diante dessa realidade, não basta "desenharmos” uma nova sociedade como se tivéssemos um papel branco à nossa frente. Precisamos de ima imaginação utópica de um mundo mais humano e justo que nos possibilita ver as contradições e injustiças desse mundo, mas o novo desenho precisa ser feito a partir do mundo atual. Deduzir diretamente dessa imaginação um projeto de sociedade pode nos levar ao idealismo romântico e/ou a equívocos estratégicos terríveis.

A economia está globalizada, formando uma divisão social de trabalho em escala mundial. E não será possível modificar isso num futuro próximo, a não ser que passemos por uma catástrofe em escala mundial. O tamanho da escala e de complexidade da economia global exige, para seu funcionamento, relações de troca, isto é, relações mercantis e mercado em escala global. O que significa dizer que não é possível defender os direitos humanos, começando pelo direito de viver, de todas as pessoas propondo uma nova economia baseada somente em pequenas empresas ou uma sem mercado.

Ao mesmo tempo em que reconhecemos a necessidade hoje do mercado global, também sabemos que esse mercado tende à concentração de riqueza, exclusão dos mais pobres e deterioração do meio ambiente. O caminho da solução não consiste em "fugir” para imaginação de um mundo sem essa contradição, mas em enfrentá-la.