"Ser marxista é, antes de mais nada, ser anticapitalista, ou seja, lutar pela construção de uma sociedade sem classes, que suprima a exploração do homem pelo homem e a propriedade privada dos grandes meios de produção, criando condições para que as relações entre os homens sejam fundadas na solidariedade e não no egoísmo do mercado. Claro, ser marxista não é repetir acriticamente tudo o que Marx disse. Marx morreu há cerca de 120 anos e muita coisa ocorreu desde então. Mas, sem o método que ele nos legou, é impossível compreender o que ocorre no mundo. Ele nos disse que o capital estava criando um mercado mundial, fonte de crises e iniqüidades, e nunca isso foi tão verdadeiro quanto no capitalismo globalizado de hoje. Falou também em fetichismo da mercadoria, na conversão do mercado num ente fantasmagórico que oculta as relações humanas, e nunca isso se manifestou tão intensamente quanto em nossos dias, quando lemos na imprensa barbaridades do tipo 'o mercado ficou nervoso'." (Carlos Nelson Coutinho)

sexta-feira, 20 de julho de 2012

As mentiras paraguaias das elites brasileiras


As mentiras paraguaias das elites brasileiras
Por João Pedro Stedile*


Mal havia terminado o golpe de Estado contra o presidente Fernando Lugo e flamantes porta-vozes da burguesia brasileira saíram em coro a defender os golpistas.

Seus argumentos eram os mesmos da corrupta oligarquia paraguaia, repetidos também de forma articulada por outros direitistas em todo continente. O impeachment, apesar de tão rápido, teria sido legal. Não importa se os motivos alegados eram verdadeiros ou justos.

Foram repetidos surrados argumentos paranoicos da Guerra Fria: “O Paraguai foi salvo de uma guerra civil” ou “o Paraguai foi salvo do terrorismo dos sem-terra”.

Se a sociedade paraguaia estivesse dividida e armada, certamente os defensores do presidente Lugo não aceitariam pacificamente o golpe.

Curuguaty, que resultou em sete policiais e 11 sem-terra assassinados, não foi um conflito de terra tradicional. Sem que ninguém dos dois lados estivesse disposto, houve uma matança indiscriminada, claramente planejada para criar uma comoção nacional. Há indícios de que foi uma emboscada armada pela direita paraguaia para culpar o governo.

Foi o conflito o principal argumento utilizado para depor o presidente. Se esse critério fosse utilizado em todos os países latino-americanos, FHC seria deposto pelo massacre de Carajás. Ou o governador Alckmin pelo caso Pinheirinho.

O Paraguai é o país do mundo de maior concentração da terra. De seus 40 milhões de hectares, 31.086.893 ha são de propriedade privada. Os outros 9 milhões são ainda terras públicas no Chaco, região de baixa fertilidade e incidência de água.

Apenas 2% dos proprietários são donos de 85% de todas as terras. Entre os grandes proprietários de terras no Paraguai, os fazendeiros estrangeiros são donos de 7.889.128 hectares, 25% das fazendas.

Não há paralelo no mundo: um país que tenha “cedido” pacificamente para estrangeiros 25% de seu território cultivável. Dessa área total dos estrangeiros, 4,8 milhões de hectares pertencem brasileiros.

Na base da estrutura fundiária, há 350 mil famílias, em sua maioria pequenos camponeses e médios proprietários. Cerca de cem mil famílias são sem-terra.

O governo reconhece que desde a ditadura Stroessner (1954-1989) foram entregues a fazendeiros locais e estrangeiros ao redor de 10 milhões de hectares de terras públicas, de forma ilegal e corrupta. E é sobre essas terras que os movimentos camponeses do Paraguai exigem a revisão.

Segundo o censo paraguaio, em 2002 existiam 120 mil brasileiros no país sem cidadania. Desses, 2.000 grandes fazendeiros controlam áreas superiores a mil ha e se dedicam a produzir soja e algodão para empresas transnacionais como Monsanto, Syngenta, Dupont, Cargill, Bungue…

Há ainda um setor importante de médios proprietários, e um grande número de sem-terra brasileiros vivem como trabalhadores por lá. São esses brasileiros pobres que a imprensa e a sociologia rural apelidaram de “brasiguaios”.

O conflito maior é da sociedade paraguaia e dos camponeses paraguaios: reaver os 4,8 milhões de hectares usurpados pelos fazendeiros brasileiros. Daí a solidariedade de classe que os demais ruralistas brasileiros manifestaram imediatamente contra o governo Lugo e a favor de seus colegas usurpadores.

O mais engraçado é que as elites brasileiras nunca reclamaram de, em função de o Senado paraguaio sempre barrar todas as indicações de nomes durante os quatro anos do governo Lugo, a embaixada no Brasil ter ficado sem mandatário durante todo esse período.


* João Pedro Stedile é economista, integrante da coordenação nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) e da Via Campesina Brasil


(Artigo publicado originalmente na coluna Tendências/Debates do jornal Folha de S. Paulo de 17/07/2012)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

O futuro que não queremos

O futuro que não queremos
Marcos Arruda - 12/07/2012

Duas clivagens dividem hoje a humanidade: entre a classe dos donos do capital e as classes que só possuem sua força de trabalho; e entre o bloco dos que professam a fé na acumulação ilimitada de riqueza material, ignorando que os recursos do planeta são finitos, e o bloco dos que já praticam uma socioeconomia fundada na sobriedade feliz, conscientes de que podemos ser felizes consumindo menos bens materiais e vivendo em solidária harmonia entre humanos e com os outros seres da Terra.

Apesar dos compromissos voluntários assumidos pelas elites nas Cúpulas oficiais (Rio92 e Rio+20), os indicadores de “desenvolvimento sustentável” dos últimos 20 anos são estarrecedores: PIB global, +75%; emissões de carbono,+36%; degelo da banquisa do Ártico, +35%; ritmo anual de degelo das geleiras, +100%; população mundial, +26%; produção de alimentos, +45%; 1/3 deste total (1,3 bilhões de toneladas) é desperdiçado; desnutridos: mais de 1 bilhão, obesos: mais de 1 bilhão; agricultura usa 70% da água consumida; crescente desigualdade de renda como fator de geração de pobreza: renda mundial detida pelos 20% mais ricos passou de 82,7% para 91,5%; a fração dos 20% mais pobres caiu 20 vezes, de 1,4% para 0,07%; crescente desigualdade de expectativa de vida: para os 20% mais ricos, de 77 para 79 anos; para os 20% mais pobres, de 46 para 44 anos de vida (PNUD).

Estes indicadores comprovam o fracasso do “Desenvolvimento Sustentável”. Mas a avaliação dos resultados de 20 anos de tratados internacionais sobre pobreza, clima, gênero, biodiversidade, desmatamento e desertificação, água, emissões de gases-estufa, acidificação dos oceanos, degelo das calotas e geleiras foi retirada da agenda da Rio+20. Por que? “Não devemos olhar para trás. É tempo de construir o futuro.” Para disfarçar esse fracasso as grandes empresas lançaram a Economia Verde, não só para evitar a avaliação dos 20 anos de promessas vazias, mas para pintar de verde a economia ‘de mercado’, apresentada como ‘o novo caminho’ de salvação da vida e do planeta.

Soluções efetivas além da retórica estão ausentes no documento oficial, O Futuro que Queremos. A Declaração da Cúpula dos Povos na Rio+20 é incisiva: “As instituições financeiras multilaterais, as coalizões a serviço do sistema financeiro, como o G8/G20, a captura corporativa da ONU e a maioria dos governos demonstraram irresponsabilidade com o futuro da humanidade e do planeta e promoveram os interesses das corporações na conferência oficial. Em contraste, a vitalidade e a força das mobilizações e dos debates na Cúpula dos Povos fortaleceram a nossa convicção de que só o povo organizado e mobilizado pode libertar o mundo do controle das corporações e do capital financeiro.”

As elites globais presentes na Cúpula oficial identificam o “desenvolvimento sustentável” com “o crescimento econômico sustentado”. No mundo atual, quase 90% do consumo global é atribuído aos 20% mais ricos. Sem reduzir este consumo excessivo e planejar o crescimento econômico em prol dos necessitados não há solução para a crise social e ambiental. Sem compartilhar a riqueza, o saber e o poder a humanidade não sobreviverá. Só uma nova consciência e um novo paradigma de desenvolvimento podem responder a este desafio.

MARCOS ARRUDA é economista, educador e associado do Instituto Transnacional.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Fracasso da Rio+20

Fracasso da Rio+20

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais
 
 
Terminou em fracasso a Conferência da ONU para o Desenvolvimento Sustentável. Foram gastos US$ 150 milhões para promovê-la. Dinheiro jogado fora. Teria sido melhor utilizado na preservação de florestas.

O documento final, aprovado por 193 países, é pífio. Como nenhum país, sobretudo os mais ricos, queria se comprometer com medidas a curto prazo, o texto sofreu tantos cortes, para não desagradar a ninguém, que desagradou até mesmo o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. No dia seguinte, pressionado pelo Brasil, ele voltou atrás. Desdisse o que havia dito e defendeu o documento, no qual não foram levadas em conta as sugestões da sociedade civil.

Nada de concreto foi decidido, todos os compromissos pela sustentabilidade ficaram para depois... Acordou-se que, no ano que vem, serão definidos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Em 2014, a resolução de onde virão os recursos para financiá-los. E a partir de 2015 devem ser implementados.

O evento se equipara à crônica de uma morte anunciada. Os líderes dos países ricos viraram as costas à Rio+20. Obama não veio. E ainda teve o descaramento de enviar sua Secretária de Estado, Hillary Clinton, apenas no último dia, quando tudo já estava debatido e aprovado.

Em discurso inócuo, ela anunciou que os EUA destinarão US$ 20 milhões de dólares à proteção ambiental de países da África. Uma esmola, sobretudo considerando que os EUA figuram, ao lado da China, como principal culpado pela degradação da natureza.

O que a Rio-92 representou de avanço, a Rio+20 representa de retrocesso. Em 1992 foram aprovadas a Carta da Terra, a Agenda 21 e três importantes convenções: biodiversidade, desertificação e mudanças climáticas. A partir de então, muitos países criaram ministérios do meio ambiente.

O entusiasmo durou dez anos. Em 2002, na Conferência de Johanesburgo, os governos se recusaram a prestar contas do que haviam acordado no Rio. Já tinham constatado que não há compatibilidade entre preservação ambiental e modelo de desenvolvimento – predador e excludente - centrado na acumulação privada do capital. Tivemos então dez anos (2002-2012) de conversa fiada.

A Rio+20 propôs aos governos, via G-77 (grupo dos países menos desenvolvidos), criarem um fundo de US$ 30 bilhões para financiar iniciativas de sustentabilidade em seus países. A proposta não foi aprovada. Ninguém mexeu no bolso. Isso uma semana depois de o G-20, no México, destinar US$ 456 bilhões para tentar sanar a crise na zona do euro.

Não falta dinheiro para salvar bancos. Para salvar a humanidade e a natureza, nem um tostão. Os donos do mundo e do dinheiro vivem na ilusão de que a nave espacial chamada Planeta Terra possui, como os voos internacionais, primeira classe e classe executiva.

O fato é que os governos, com raras exceções, não estão interessados em investir na sustentabilidade. Isso depende de um esforço a médio e longo prazos. E governos buscam resultados propagáveis nas próximas eleições.

Sustentabilidade é como saneamento. Segundo o Ministério das Cidades, 57% da população brasileira não têm esgoto coletado. Como esgoto passa por debaixo do solo, nossos políticos dão as costas, interessados no que traz visibilidade.

Os governos querem desenvolvimento entendido como multiplicação do capital. Nada de proteger a biodiversidade. Fingem não se dar conta de que as mudanças climáticas decorrem da degradação da biodiversidade.

A voracidade do capital venceu na Rio+20. Hoje, 7 bilhões de pessoas sobrevivem consumindo um planeta e meio. Em breve, chegaremos a dois planetas. Como os recursos naturais são limitados, as gerações futuras correm o sério risco de padecerem a carência de bens essenciais, como água e alimentos.

A chuva que caiu sobre o Rio durante o evento era como lágrimas de Gaia que, com certeza, tinha esperança de que a Rio+20 a livrasse do estupro que sofre em mãos de quem procura apenas tirar proveito dela, indiferente aos direitos das gerações futuras.

Valeu estar ali e participar da Cúpula dos Povos, onde povos indígenas se misturavam com ambientalistas, jovens e crianças, para preservar ao menos a esperança de que vale a pena lutar por um outro mundo possível e sustentável.

Questão ambiental e social

Questão ambiental e social

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais



A questão ambiental é também uma questão social. A conclusão é da Royal Society, a mais conceituada academia científica do Reino Unido.

Em dois anos de pesquisas ela constatou que não basta falar em preservação ambiental, energias renováveis e desaquecimento global, sem tocar no tendão de Aquiles apontado pelo velho Marx no século 19: a desigualdade social.

Os países ricos e emergentes consomem excessivamente bens naturais, como água e energia. E o fazem através de processos extrativos que não levam em conta danos ambientais e efeitos sobre a população local, como é o caso da construção da usina de Belo Monte, no Brasil, ou o uso de energia nuclear mundo afora.

Aprendemos na escola que o nosso corpo reflete a composição do planeta: 70% de água. Da água do mundo, apenas 2,5% são potáveis. Dessa parcela, 69% estão congelados nos polos da Terra, e 30% que se acham sob o solo (aquíferos) são ainda inacessíveis à atual tecnologia. O resto –140 mil quilômetros cúbicos– encontra-se em lagos, rios etc.

Um estadunidense consome 50 vezes mais água que um indiano. E 500 vezes mais energia. Assim como já se iniciou a guerra fria por alimentos, com o uso de poderosos mísseis como os transgênicos, em breve teremos a guerra pela água. Prevê-se que, em 2025, 1,8 bilhão de pessoas padecerão de escassez de água.

A carência de água deve-se, sobretudo, às mudanças climáticas. Devido ao consumismo, países desenvolvidos e emergentes –cerca de 20 ao todo- emitem 50 vezes mais gases estufa que países pobres. O uso excessivo de agrotóxicos provoca a erosão do solo e o desmatamento prolonga os períodos de estiagem, estimulando movimentos migratórios e acentuando a pobreza.

O planeta ganha, a cada ano, 80 milhões de pessoas, apesar da queda na taxa de fertilidade. Para o neoliberalismo, 80 milhões de consumistas (não confundir com consumidores) em potencial.
Entre 1960 e 2007 a fabricação de novos artefatos tecnológicos –cada vez mais descartáveis– quadruplicou a produção de cobre e chumbo, e aumentou em 77 vezes a exploração de minerais associados à alta tecnologia, como tântalo e nióbio.

A Rio+20, tanto na reunião dos chefes de Estado quanto na Cúpula dos Povos, deveria ter debatido como o consumismo desenfreado e a desigualdade de renda entre os povos afetam o equilíbrio ambiental. Considerar poluição e pobreza como fatores divorciados é adotar uma postura míope, equivocada, frente à degradação da Terra e a ameaça de escassez de seus recursos naturais.