Não estamos condenados ao capitalismo perpétuo
Leandro Konder
O que há de mais dramático na história é o fato de que tudo que aconteceu no passado poderia ter acontecido de maneira um pouco diferente. Dessa constatação, devemos extrair a conseqüência: tudo que está acontecendo hoje poderia estar acontecendo de maneira um pouco diferente.
Antigamente (lá pelo final do século 19), alguns autores marxistas, preocupados em defender a inteligibilidade da história, recusando-se ─ com razão ─ a entregá-la ao império do acaso, sustentaram uma versão determinista do materialismo histórico. Convenceram-se de que, no movimento da história, tudo fazia sentido porque tudo correspondia a causas objetivamente necessárias.
Essa concepção determinista ajudava os socialistas a suportar a repressão, a superar o desânimo causado pelas derrotas. Pensavam eles: estamos aqui, sendo presos, torturados, porém, de fato, estamos na crista da onda constituída pela classe operária, que nos apóia e que necessariamente vai nos levar à vitória.
Esse pensamento tinha um grave inconveniente: na medida em que a onda proletária supostamente os impulsionava, os socialistas não eram suficientemente desafiados a tomar iniciativas, a assumir riscos, a ser criativos. Suportavam os maus momentos, mas não criavam os bons momentos na freqüência desejada.
Diversos autores combateram o determinismo no campo da história política e cultural. Antonio Gramsci, Georg Lukács, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Jean Paul Sartre contribuiram decisivamente para esse combate.
Na Alemanha, impõe-se a recordação da advertência de Rosa Luxemburgo: “Podemos ir para o socialismo, porém também podemos escorregar para a barbárie”. No Brasil, não podemos deixar de lembrar, com orgulho, a rica obra crítica de Antonio Candido.
A partir de determinado período, na segunda metade do século 20, o determinismo foi se deslocando da esquerda para a direita. Até chegar à figura de Margareth Thatcher, que foi primeira-ministra da Inglaterra e era chamada de Dama de Ferro.
Depois de aprofundados estudos, que lhe tomaram cerca de 10 minutos por semana, a Dama de Ferro chegou à conclusão de que os fatos e os dados estavam mostrando com clareza que não havia alternativa para o capitalismo.
O movimento inexorável da história, afinal, tinha conduzido a humanidade a seu destino natural, a sua meta definitiva. Não havia do que reclamar. “There is no alternative (não há alternativa), repetia Thatcher. A frase foi dita por ela tantas vezes que acabou sendo transformada numa fórmula condensada, num apelido composto a partir das letras iniciais de cada uma das quatro palavras: de there is no alternative surgiu TINA.
A política, contudo, é um campo de batalha cruel. Ninguém pode proteger os detentores do poder e os detentores da riqueza contra o desgaste que a história lhes impõe. A erosão não respeita ninguém: nem professores universitários, eruditos, nem torneiros mecânicos escassamente familiarizados com a norma culta do idioma português. Os detentores do poder e da riqueza, mesmo solidamente instalados na direção da sociedade, pedem constantemente a seus ideólogos que lhe dêem apoio teórico.
Recorrem sobretudo aos economistas. E os economistas produzem prontamente uma rica oferta para essa demanda. De Delfim Neto ao engraçado George Vidor, passando por Miriam Leitão, os economistas vão elaborando esquemas explicativos que tendem a anular a esfera das iniciativas político-econômicas mais ousadas, apresentando a submissão de tudo e de todos ao mercado como conseqüência de um processo histórico fatal, inexorável.
É a volta do determinismo. Dessa vez, ele não assegura o avanço do proletariado, não garante aos revolucionários que eles estão na crista da onda, que nada poderá detê-los. Dessa vez, o determinismo ─ globalizado ─ apregoa, nos quatro cantos da terra, que a única sabedoria possível no mundo atual é resignar-se à vida pautada pela vitória do capitalismo.
Se observarmos a situação de um ponto de vista crítico, entretanto, o quadro não nos parecerá tão idílico. Em meados do século 19, Marx fez críticas contundentes ao capitalismo. Afirmou que o mercado, transformado em centro da sociedade, danifica seriamente os valores qualitativos dos seres humanos (reduzindo-os ao dinheiro). Sustentou que a exploração do trabalho pelo capital, nas condições de privilégio da propriedade privada, constitui o fenômeno da mais-valia, incompatível com a remuneração justa. Diagnosticou no capitalismo uma contradição grave entre o caráter social da produção e o caráter individual da apropriação. Marx constatou, também, que, nas condições de hipercompetição, as pessoas não conseguem superar as distorções ideológicas e desperdiçam criatividade (são alienadas).
Em sua história atual (essa mesma que o determinismo se esforça para negar), o capitalismo não resolveu nenhum dos problemas apontados por Marx. De onde seus propagandistas extraem tanta empáfia?
Leandro Konder é filósofo
Fonte: Publicado no caderno Idéias & Livros do Jornal do Brasil de 19 de maio de 2007.
"Ser marxista é, antes de mais nada, ser anticapitalista, ou seja, lutar pela construção de uma sociedade sem classes, que suprima a exploração do homem pelo homem e a propriedade privada dos grandes meios de produção, criando condições para que as relações entre os homens sejam fundadas na solidariedade e não no egoísmo do mercado. Claro, ser marxista não é repetir acriticamente tudo o que Marx disse. Marx morreu há cerca de 120 anos e muita coisa ocorreu desde então. Mas, sem o método que ele nos legou, é impossível compreender o que ocorre no mundo. Ele nos disse que o capital estava criando um mercado mundial, fonte de crises e iniqüidades, e nunca isso foi tão verdadeiro quanto no capitalismo globalizado de hoje. Falou também em fetichismo da mercadoria, na conversão do mercado num ente fantasmagórico que oculta as relações humanas, e nunca isso se manifestou tão intensamente quanto em nossos dias, quando lemos na imprensa barbaridades do tipo 'o mercado ficou nervoso'." (Carlos Nelson Coutinho)
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