"Ser marxista é, antes de mais nada, ser anticapitalista, ou seja, lutar pela construção de uma sociedade sem classes, que suprima a exploração do homem pelo homem e a propriedade privada dos grandes meios de produção, criando condições para que as relações entre os homens sejam fundadas na solidariedade e não no egoísmo do mercado. Claro, ser marxista não é repetir acriticamente tudo o que Marx disse. Marx morreu há cerca de 120 anos e muita coisa ocorreu desde então. Mas, sem o método que ele nos legou, é impossível compreender o que ocorre no mundo. Ele nos disse que o capital estava criando um mercado mundial, fonte de crises e iniqüidades, e nunca isso foi tão verdadeiro quanto no capitalismo globalizado de hoje. Falou também em fetichismo da mercadoria, na conversão do mercado num ente fantasmagórico que oculta as relações humanas, e nunca isso se manifestou tão intensamente quanto em nossos dias, quando lemos na imprensa barbaridades do tipo 'o mercado ficou nervoso'." (Carlos Nelson Coutinho)

quinta-feira, 31 de maio de 2012

Ditadores e torturadores não podem ser nomes de ruas

Ditadores e torturadores não podem ser nomes de ruas
*Por Gilberto Maringoni

Uma Comissão da Verdade de verdade poderia começar seus trabalhos propondo ao Congresso Nacional uma lei simples: proibir em todo o território nacional que log...radouros públicos sejam batizados com nomes de pessoas que enxovalharam a democracia e os bons costumes. E alterar as denominações existentes.

Em São Paulo, a situação é vergonhosa. A principal rodovia do estado chama-se Castello Branco. De tão naturalizada está a questão, que poucos param para pensar no seguinte: aquele foi o chefe da conspiração que acabou com a democracia no Brasil, em 1964. A homenagem foi feita por Roberto de Abreu Sodré, governador biônico, que inaugurou a via em 1967. Estávamos em plena ditadura e seria natural que um serviçal do regime quisesse adular seus superiores.

A via não representa uma exceção. A cidade comporta ainda o elevado (?) Costa e Silva, em homenagem ao segundo governante da ditadura. O idealizador foi outro funcionário do regime, Paulo Salim Maluf, nos idos de 1969. O mesmo Maluf mimoseou, em 1982, quando governador, o famigerado Caveirinha, alcunha que imortalizou o general Milton Tavares de Souza, falecido no ano anterior. Caveirinha foi chefe do Centro de Informação do Exército (CIE) e suas grandes obras foram a implantação dos DOI-CODI e da Operação Bandeirantes (Oban), órgãos responsáveis pelo assassinato de inúmeros oponentes do regime. Foi também um dos planejadores da repressão à guerrilha do Araguaia (1972-76).

Ernesto Geisel, ditador entre 1974 e 1979, é o nome de um conjunto habitacional em Bauru. Emilio Garrastazu Médici, o comandante da fase mais repressiva da ditadura, nomeia dezenas de ruas, escolas e praças pelo Brasil. Presidente Figueiredo é uma cidade no Amazonas. Diadema abriga uma Escola Estadual Filinto Muller, temido chefe da Polícia Política do Rio de Janeiro entre 1933 e 1942. Imortalizou-se por ter comandado a operação que resultou na deportação de Olga Benario à Alemanha, em 1936.

Mas nada supera a inacreditável rua Dr. Sergio Fleury, na Vila Leopoldina, na capital.

Os nomes dos funcionários mais ou menos graduados da ditadura podem ser localizados com uma rápida olhada no Google. Castello, Costa e Silva, Médici e Figueiredo emprestam seus nomes a centenas de ruas, avenidas, estradas, escolas e edifícios públicos espalhados pelo Brasil.

Propostas de mudança Em 2006, o então prefeito de São Paulo, José Serra (PSDB) enviou mensagem à Câmara dos Vereadores de São Paulo, propondo alteração do nome do viaduto que enaltece Caveirinha. Aprovado em primeira instância, o projeto aguarda até hoje sanção de Gilberto Kassab.

O vereador Pedro Ruas e a vereadora Fernanda Melchiona, do PSOL de Porto Alegre, apresentaram em dezembro último um projeto de lei visando mudar o nome da Avenida Presidente Castello Branco para Avenida da Legalidade. A intenção é não apenas banir a memória do líder golpista, mas homenagear o movimento liderado por Leonel Brizola, em 1961, que deteve as articulações visando impedir a posse do presidente João Goulart, após a renúncia de Janio Quadros.

Manter tais denominações significa conservar viva a memória de gente que deve ser colocada em seu justo lugar na História: o daqueles que perpetraram crimes contra a democracia e a cidadania, prejudicaram o país e contribuíram para o atraso em vários campos de atividade.

Na Itália não existe rua, monumento ou edifício público com o nome de Benito Mussolini ou de outro funcionário graduado do regime fascista. A decisão faz parte de uma luta ideológica que visa extirpar as marcas da intolerância, da brutalidade e da xenofobia que marcaram a vida do país entre 1924 e 1944.

Tampouco há na Alemanha uma avenida Adolf Hitler, um aeroporto Herman Göering (que foi ás da aviação na I Guerra Mundial), um viaduto Joseph Goebbels ou coisas que o valham. Aliás, evitou-se durante décadas batizar crianças com o nome Adolf, por motivos mais ou menos óbvios.

Argentina, Chile e Uruguai também não fazem rapapés à memória de responsáveis pelos anos de terror institucionalizado. A cidade de Puerto Stroessner, no Paraguai, teve seu nome mudado para Ciudad Del Este, assim que o ditador foi deposto, em 1989.

No Brasil, como os zumbis da ditadura não apenas assombram, mas aparentemente intimidam o poder democrático, as mudanças não acontecem. Estão aí, fagueiros e lampeiros na vida nacional, figuras como José Sarney, Marco Maciel, Paulo Maluf e outras, crias da ditadura e cheios de autoridade na vida pública. E os pijamas do Clube Militar volta e meia fazem ordem unida para enaltecer os anos de chumbo.

Banir os nomes de gente dessa laia dos logradouros públicos é um bom passo para se consolidar a democracia.

*Gilberto Maringoni, jornalista e cartunista, é doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de “A Venezuela que se inventa – poder, petróleo e intriga nos tempos de Chávez” (Editora Fundação Perseu Abramo).

Os dois lados da Comissão da Verdade

Os dois lados da Comissão da Verdade


Frei Betto: Escritor e assessor de movimentos sociais


A Comissão da Verdade, nomeada pela presidente Dilma, corre o risco de se transformar em Comissão da Vaidade, caso seus integrantes façam dela alavanca de vaidades pessoais.

No dia seguinte às nomeações, ainda antes da posse, opiniões díspares dos membros da comissão quanto a seu objetivo precípuo surgiram na mídia.

O ministro Gilson Dipp, do Superior Tribunal de Justiça, se enquadra nos critérios definidos pela lei que criou a comissão? Nos termos de seu artigo 2º, §1 inciso II, "Não poderão participar da Comissão Nacional da Verdade aqueles que (...) não tenham condições de atuar com imparcialidade no exercício das competências da Comissão”.

Ao atuar como perito do Estado brasileiro na Corte Interamericana de Direitos Humanos, Dipp se posicionou contra familiares dos guerrilheiros do Araguaia, cujos corpos encontram-se desaparecidos. Agirá agora com imparcialidade?

O papel dos sete nomeados é investigar graves violações de direitos humanos ocorridas entre 1946 e 1988. O foco principal é, em nome do Estado, abraçarem a postura épica e ética de Antígona e dar sepultura digna aos mortos e desaparecidos sob a ditadura militar (1964-1985).

A comissão atuará sob a obscura luz da injusta Lei da Anistia, promulgada em 1979 e referendada pelo STF em 2010. Esta lei nivela torturadores e torturados, assassinos e assassinados. Ora, como anistiar quem jamais sofreu julgamento, sentença e punição?

Não houve "dois lados”. Houve o golpe de Estado perpetrado por militares e a derrubada de um governo constitucional e democraticamente eleito. A ditadura implantada cassou e caçou partidos e políticos, e criou um aparelho repressivo ("o monstro”,segundo o general Golbery) que instalou centros de torturas mantido com recursos públicos e privados.

O aparelho repressivo, em nome da "segurança nacional”,prendeu, seviciou, assassinou, exilou, baniu e fez desaparecer os que ousaram combater a ditadura, e também inúmeras pessoas que jamais se envolveram com a resistência organizada, como o ex-deputado Rubens Paiva, o jornalista Vladimir Herzog e o padre Antônio Henrique Pereira Neto.

Cabe à comissão elucidar a morte das vítimas da ditadura, o que ocorreu aos desaparecidos e quem são os responsáveis por tais atrocidades. Militares cumprem ordens superiores. É preciso apurar quem determinou a prática de torturas, a eliminação sumária de militantes políticos e o ocultamento de seus corpos.

A comissão deverá, enfim, abrir os arquivos das Forças Armadas, ouvir algozes e seus superiores hierárquicos, vítimas e parentes dos desaparecidos, e esclarecer episódios emblemáticos jamais devidamente investigados, como o atentado ao Riocentro, em 1981, preparado para ceifar a vida de milhares de pessoas.

Defender o conceito acaciano de "crimes conexos” e convocar como suspeitos aqueles a quem o Brasil deve, hoje, o resgate da democracia e do Estado de Direito, equivaleria a imputar à Resistência Francesa crimes contra a ocupação nazista de Paris ou convocar os judeus como réus no Tribunal de Nuremberg.

Os integrantes da Comissão da Verdade sabem muito bem que legalidade e justiça não são sinônimos. E tenham presente a afirmação de Cervantes: "A verdade alivia mais do que machuca. E estará sempre acima de qualquer falsidade, como o óleo sobre a água”.

terça-feira, 29 de maio de 2012

Os limites do lulismo



Os limites do lulismo
Vladimir Safatle - 19/04/2012

Há alguns anos, o cientista político André Singer cunhou o termo “lulismo” para dar conta do modelo político-econômico implementado no Brasil desde o início do século 21.

Baseado em uma dinâmica de aumento do poder aquisitivo das camadas mais baixas da população por meio do aumento real do salário mínimo, de programas de transferência de renda e de facilidades de crédito para consumo, o lulismo conseguiu criar o fenômeno da “nova classe média”.

No plano político, esse aumento do poder aquisitivo da base da pirâmide social foi realizado apoiando-se na constituição de grandes alianças ideologicamente heteróclitas, sob a promessa de que todos ganhariam com os dividendos eleitorais da ascensão social de parcelas expressivas da população.

O resultado foi uma política de baixa capacidade de reforma estrutural e de perpetuação dos impasses políticos do presidencialismo de coalizão brasileiro.


No entanto é bem possível que estejamos no momento de compreensão dos limites do modelo gestado no governo anterior. O aumento exponencial do endividamento das famílias demonstra como elas, atualmente, não têm renda suficiente para dar conta das novas exigências que a ascensão social coloca na mesa.

É fato que o país precisa de uma nova repactuação salarial. As remunerações são, em média, radicalmente baixas e corroídas por gastos que poderiam ser bancados pelo Estado. Por isso, é possível dizer que a próxima etapa do desenvolvimento nacional passe pela recuperação dos salários.

A melhor maneira de fazer isso é por meio de uma certa ação do Estado. Uma família que recebe R$ 3.500 mensais gasta praticamente um terço de sua renda só com educação privada e planos de saúde. Normalmente, tais serviços são de baixa qualidade. Caso fossem fornecidos pelo Estado, tais famílias teriam um ganho de renda que isenção alguma de imposto seria capaz de proporcionar.

Entretanto a universalização de uma escola pública de qualidade e de um serviço de saúde que realmente funcione não pode ser feita sob a dinâmica do lulismo, pois ela exige investimentos estatais só possíveis pela taxação pesada sobre fortunas, lucros bancários e renda da classe alta. Ou seja, isso exige um aumento de impostos sobre aqueles que vivem de maneira nababesca e que têm lucros milionários no sistema financeiro.

Algo dessa natureza exige, por sua vez, uma mobilização política que está fora do quadro de consensos do lulismo. Porém a força política que poderia pressionar essa nova dinâmica ainda não existe no Brasil. Ela pede uma esquerda que não tenha medo de dizer seu nome.



Vladimir Safatle é professor de filosofia da USP

quarta-feira, 23 de maio de 2012

1964: Golpe Militar a serviço do Golpe de Classe

1964: Golpe Militar a serviço do Golpe de Classe

Leonardo Boff é teólogo, filósofo e escritor
 
 
O objeto da Comissão da Verdade deve sim, tratar dos crimes e dos desaparecimentos perpetrados pelos agentes do Estado ditatorial. É sua tarefa precípua e estatutária. Mas não pode se reduzir a estes fatos. Há o risco de os juízos serem pontuais. Precisa-se analisar o contexto maior que permite entender a lógica da violência estatal e que explica a sistemática produção de vítimas. Mais ainda, deixa claro o trauma nacional que significou viver sob suspeitas, denúncias, espionagem e medo paralisador.

Neste sentido, vítimas não foram apenas os que sentiram em seus corpos e nas suas mentes a truculência dos agentes do Estado. Vítimas foram todos os cidadãos. Foi toda a nação brasileira. Para que a missão da Comissão da Verdade seja completa e satisfatória, caberia a ela fazer um juízo ético-político sobre todo o período do regime militar.

Importa assinalar claramente que o assalto ao poder foi um crime contra a constituição. Configurou uma ocupação violenta de todos os aparelhos de Estado para, a partir deles, montar uma ordem regida por atos institucionais, pela repressão e pelo estado de terror.

Bastava a suspeita de alguém ser subversivo para ser tratado como tal. Mesmo detidos e sequestrados por engano como inocentes camponeses, para logo serem seviciados e torturados. Muitos não resistiram e sua morte equivale a um assassinato. Não devemos deixar passar ao largo, os esquecidos dos esquecidos que foram os 246 camponeses mortos ou desaparecidos entre 1964-1979.

O que os militares cometeram foi um crime lesa-pátria. Alegam que se tratava de uma guerra civil, um lado querendo impor o comunismo e o outro defendendo a ordem democrática. Esta alegação não se sustenta. O comunismo nunca representou entre nós uma ameaça real. Na histeria do tempo da guerra-fria, todos os que queriam reformas na perspectiva dos historicamente condenados e ofendidos –as grandes maiorias operárias e camponesas– eram logo acusados de comunistas e de marxistas, mesmo que fossem bispos como o insuspeito Dom Helder Câmara. Contra eles não cabia apenas a vigilância, mas para muitos a perseguição, a prisão, o interrogatório aviltante, o pau-de-arara feroz, os afogamentos desesperadores. Os alegados "suicídios” camuflavam apenas o puro e simples assassinato. Em nome do combate ao perigo comunista, se assumiu a prática comunista-estalinista da brutalização dos detidos. Em alguns casos se incorporou o método nazista de incinerar cadáveres como admitiu o ex-agente do Dops de São Paulo, Cláudio Guerra.

O grande perigo para o Brasil sempre foi o capitalismo selvagem. Usando palavras de Capistrano de Abreu, nosso historiador mulato, "capou e recapou, sangrou e ressangrou” as grandes maiorias de nosso povo.

O Estado ditatorial militar, por mais obras que tenha realizado, fez regredir política e culturalmente o Brasil. Expulsou ou obrigou ao exílio nossas inteligências e nossos artistas mais brilhantes. Afogou lideranças políticas e ensejou o surgimento de súcubos que, oportunistas e destituídos de ética e de brasilidade, se venderam ao poder ditatorial em troca benesses que vão de estações de rádio a canais de televisão.

Os que deram o golpe de Estado devem ser responsabilizados moralmente por esse crime coletivo contra o povo brasileiro.

Os militares já fora do poder garantiram sua impunidade e intangibilidade graças à forjada anistia geral e irrestrita para ambos os lados. Em nome deste status, resistem e fazem ameaças, como se tivessem algum poder de intervenção que, na verdade é inexistente e vazio. A melhor resposta é o silêncio e o desdém nacional para a vergonha internacional deles.

Os militares que deram o golpe se imaginam que foram eles os principais protagonistas desta façanha nada gloriosa. Na sua indigência analítica, mal suspeitam que foram, de fato, usados por forças muito maiores que as deles.

René Armand Dreifuss escreveu em 1980 sua tese de doutorado na Universidade de Glasgow com o título: 1964: A conquista do Estado, ação política, poder e golpe de classe (Vozes 1981). Trata-se de um livro com 814 páginas das quais 326 de documentos originais. Por estes documentos fica demonstrado: o que houve no Brasil não foi um golpe militar, mas um golpe de classe com uso da força militar.

A partir dos anos 60 do século passado, se formou o complexo IPES/IBAD/GLC. Explico: o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), o Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD) e o Grupo de Levantamento de Conjuntura (GLC). Compunham uma rede nacional que disseminava ideias golpistas, composta por grandes empresários multinacionais, nacionais, alguns generais, banqueiros, órgãos de imprensa, jornalistas, intelectuais, a maioria listados no livro de Dreifuss. O que os unificava, diz o autor "eram suas relações econômicas multinacionais e associadas, o seu posicionamento anticomunista e a sua ambição de readequar e reformular o Estado”(p.163) para que fosse funcional a seus interesses corporativos. O inspirador deste grupo era o General Golbery de Couto e Silva que já em "em 1962 preparava um trabalho estratégico sobre o assalto ao poder” (p.186).

A conspiração, pois estava em marcha, há bastante tempo. Aproveitando-se da confusão política criada ao redor do Presidente João Goulart, tido como o portador do projeto comunista, este grupo viu a ocasião apropriada para realizar seu projeto. Chamou os militares para darem o golpe e tomarem de assalto o Estado. Foi, portanto, um golpe da classe dominante, nacional e multinacional, usando o poder militar.

Conclui Dreifuss: "O ocorrido em 31 de março de 1964 não foi um mero golpe militar; foi um movimento civil-militar; o complexo IPES/IBAD e oficiais da ESG (Escola Superior de Guerra) organizaram a tomada do poder do aparelho de Estado” (p. 397). Especificamente afirma: "A história do bloco de poder multinacional e associados começou a 1º de abril de 1964, quando os novos interesses realmente tornaram-se Estado, readequando o regime e o sistema político e reformulando a economia a serviço de seus objetivos” (p.489). Todo o aparato de controle e repressão era acionado em nome da Segurança Nacional que, na verdade, significava a Segurança do Capital.

Os militares inteligentes e nacionalistas de hoje deveriam dar-se conta de como foram usados por aquelas elites oligárquicas que não buscavam realizar os interesses gerais do Brasil; mas, sim, alimentar sua voracidade particular de acumulação, sob a proteção do regime autoritário dos militares.

A Comissão da Verdade prestaria esclarecedor serviço ao país se trouxesse à luz esta trama. Ela simplesmente cumpriria sua missão de ser Comissão da Verdade. Não apenas da verdade de fatos individualizados; mas, da verdade do fato maior da dominação de uma classe poderosa, nacional, associada à multinacional, para, sob a égide do poder discricionário dos militares, tranquilamente, realizar seus propósitos corporativos de acumulação. Isso nos custou 21 anos de privação da liberdade, muitos mortos e desaparecidos e de muito padecimento coletivo.

PSOL não ouviu vereador amigo de Cachoeira

Eis que o PSOL é atingido pela "Cachoeira"...
É bom que isso aconteça para diminuir-lhes o salto.

http://oglobo.globo.com/pais/psol-nao-ouviu-vereador-amigo-de-cachoeira-4946258

sexta-feira, 4 de maio de 2012

A terceira crise do capitalismo

A terceira crise do capitalismo

Frei Betto: Escritor e assessor de movimentos sociais

A atual crise econômica do capitalismo manifestou seus primeiros sinais nos EUA em 2007 e já faz despontar no Brasil sinais de incertezas.

O sistema é um gato de sete fôlegos. No século passado, enfrentou duas grandes crises. A primeira, no início do século XX, nos primórdios do imperialismo, ao passar do laissez-faire (liberalismo econômico) à concentração do capital por parte dos monopólios. A guerra econômica por conquista de mercados ensejou a bélica: a Primeira Guerra Mundial. Resultou numa "saída” à esquerda: a Revolução Russa de 1917.

Em 1929, nova crise, a Grande Depressão. Da noite para o dia milhares de pessoas perderam seus empregos, a Bolsa de Nova York quebrou, a recessão se estendeu por longo período, com reflexos em todo o mundo. Desta vez a "saída” veio pela direita: o nazismo. E, em consequência, a Segunda Guerra Mundial.

E agora, José?

Essa terceira crise difere das anteriores. E surpreende em alguns aspectos: os países que antes compunham a periferia do sistema (Brasil, China, Índia, Indonésia), por enquanto estão melhor que os metropolitanos. Neste ano, o crescimento dos países latino-americanos deve superar o dos EUA e da Europa. Deste lado do mundo são melhores as condições para o crescimento da economia: salários em elevação, desemprego em queda, crédito farto e redução das taxas de juros.

Nos países ricos se acentuam o déficit fiscal, o desemprego (24,3 milhões de desempregados na União Europeia), o endividamento dos Estados. E, na Europa, parece que a história –para quem já viu este filme na América Latina– está sendo rebobinada: o FMI passa a administrar as finanças dos países, intervém na Grécia e na Itália e, em breve, em Portugal, e a Alemanha consegue, como credora, o que Hitler tentou pelas armas – impor aos países da zona do euro as regras do jogo.

Até agora não há saída para esta terceira crise. Todas as medidas tomadas pelos EUA são paliativas e a Europa não vê luz no fim do túnel. E tudo pode se agravar com a já anunciada desaceleração do crescimento de China e consequente redução de suas importações. Para a economia brasileira será drástico.

O comércio mundial já despencou 20%. Há progressiva desindustrialização da economia, que já afeta o Brasil. O que sustenta, por enquanto, o lucro das empresas é que elas operam, hoje, tanto na produção quanto na especulação. E, via bancos, promovem a financeirização do consumo. Haja crédito! Até que a bolha estoure e a inadimplência se propague como peste.

A "saída” dessa terceira crise será pela esquerda ou pela direita? Temo que a humanidade esteja sob dois graves riscos. O primeiro, já é óbvio: as mudanças climáticas. Produzidas inclusive pela perda do valor de uso dos alimentos, agora sujeitos ao valor de compra estabelecido pelo mercado financeiro.

Há uma crescente reprimarização das economias dos chamados emergentes. Países, como o Brasil, regridem no tempo e voltam a depender das exportações de commodities (produtos agrícolas, petróleo e minério de ferro, cujos preços são determinados pelas transnacionais e pelo mercado financeiro).

Neste esquema global, diante do poder das gigantescas corporações transnacionais, que controlam das sementes transgênicas aos venenos agrícolas, o latifúndio brasileiro passa a ser o elo mais fraco.

O segundo risco é a guerra nuclear. As duas crises anteriores tiveram nas grandes guerras suas válvulas de escape. Diante do desemprego massivo, nada como a indústria bélica para empregar trabalhadores desocupados. Hoje, milhares de artefatos nucleares estão estocados mundo afora. E há inclusive minibombas nucleares, com precisão para destruições localizadas, como em Hiroshima e Nagasaki.

É hora de rejeitar a antecipação do apocalipse e reagir. Buscar uma saída ao sistema capitalista, intrinsecamente perverso, a ponto de destinar trilhões para salvar o mercado financeiro e dar as costas aos bilhões de serem humanos que padecem entre a pobreza e a miséria.

Resta, pois, organizar a esperança e criar, a partir de ampla mobilização, alternativas viáveis que conduzam a humanidade, como se reza na celebração eucarística, "a repartir os bens da Terra e os frutos do trabalho humano”.


*Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Gleiser, de "Conversa sobre a fé e a ciência” (Agir), entre outros livros.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

Vende-se a natureza

Vende-se a natureza

Frei Betto: Escritor e assessor de movimentos sociais



Às vésperas da Rio+20 é imprescindível denunciar a nova ofensiva do capitalismo neoliberal: a mercantilização da natureza. Já existe o mercado de carbono, estabelecido pelo Protocolo de Kyoto (1997). Ele determina que países desenvolvidos, principais poluidores, reduzam as emissões de gases de efeito estufa em 5,2%.

Reduzir o volume de veneno vomitado por aqueles países na atmosfera implica subtrair lucros. Assim, inventou-se o crédito de carbono. Uma tonelada de dióxido de carbono (CO2) equivale a um crédito de carbono. O país rico ou suas empresas, ao ultrapassar o limite de poluição permitida, compra o crédito do país pobre ou de suas empresas que ainda não atingiram seus respectivos limites de emissão de CO2 e, assim, fica autorizado a emitir gases de efeito estufa. O valor dessa permissão deve ser inferior à multa que o país rico pagaria, caso ultrapassasse seu limite de emissão de CO2.

Surge agora nova proposta: a venda de serviços ambientais. Leia-se: apropriação e mercantilização das florestas tropicais, florestas plantadas (semeadas pelo ser humano) e ecossistemas. Devido à crise financeira que afeta os países desenvolvidos, o capital busca novas fontes de lucro. Ao capital industrial (produção) e ao capital financeiro (especulação), soma-se agora o capital natural (apropriação da natureza), também conhecido por economia verde.

A diferença dos serviços ambientais é que não são prestados por uma pessoa ou empresa; são ofertados, gratuitamente, pela natureza: água, alimentos, plantas medicinais, carbono (sua absorção e armazenamento), minérios, madeira etc. A proposta é dar um basta a essa gratuidade. Na lógica capitalista, o valor de troca de um bem está acima de seu valor de uso. Portanto, tais bens naturais devem ter preços.

Os consumidores dos bens da natureza passariam a pagar, não apenas pela administração da "manufatura” do produto (como pagamos pela água que sai da torneira em casa), mas pelo próprio bem. Ocorre que a natureza não tem conta bancária para receber o dinheiro pago pelos serviços que presta. Os defensores dessa proposta afirmam que, portanto, alguém ou alguma instituição deve receber o pagamento - o dono da floresta ou do ecossistema.

A proposta não leva em conta as comunidades que vivem nas florestas. Uma moradora da comunidade de Katobo, floresta da República Democrática do Congo, relata:

"Na floresta, coletamos lenha, cultivamos alimentos e comemos. A floresta fornece tudo, legumes, todo tipo de animal, e isso nos permite viver bem. Por isso que somos muito felizes com nossa floresta, porque nos permite conseguir tudo que precisamos. Quando ouvimos que a floresta poderia estar em perigo, isso nos preocupa, porque nunca poderíamos viver fora da floresta. E se alguém nos dissesse para abandonar a floresta, ficaríamos com muita raiva, porque não podemos imaginar uma vida que não seja dentro ou perto da floresta. Quando plantamos alimentos, temos comida, temos agricultura e também caça, e as mulheres pegam siri e peixe nos rios. Temos diferentes tipos de legumes, e também plantas comestíveis da floresta, e frutas, e todo de tipo de coisa que comemos, que nos dá força e energia, proteínas, e tudo mais que precisamos.”

O comércio de serviços ambientais ignora essa visão dos povos da floresta. Trata-se de um novo mecanismo de mercado, pelo qual a natureza é quantificada em unidades comercializáveis.

Essa ideia, que soa como absurda, surgiu nos países industrializados do hemisfério Norte na década de 1970, quando houve a crise ambiental. Europa e EUA tomaram consciência de que os recursos naturais são limitados. A Terra não tem como ser ampliada. E está doente, contaminada e degradada.

Frente a isso, os ideólogos do capitalismo propuseram valorizar os recursos naturais para salvá-los. Calcularam o valor dos serviços ambientais entre US$ 16 e 54 trilhões (o PIB mundial, a soma de bens e serviços, totaliza atualmente US$ 62 trilhões). "Está na hora de reconhecer que a natureza é a maior empresa do mundo, trabalhando para beneficiar 100% da humanidade – e faz isso de graça”, afirmou Jean-Cristophe Vié, diretor do Programa de Espécies da IUCN, principal rede global pela conservação da natureza, financiada por governos, agências multilaterais e empresas multinacionais.

Em 1969, Garret Hardin publicou o artigo "A tragédia dos comuns” para justificar a necessidade de cercar a natureza, privatizá-la, e assim garantir sua preservação. Segundo o autor, o uso local e gratuito da natureza, como o faz uma tribo indígena, resulta em destruição (o que não corresponde à verdade). A única forma de preservá-la para o bem comum é torná-la administrável por quem possui competência – as grandes corporações empresariais. Eis a tese da economia verde.

Ora, sabemos como elas encaram a natureza: como mera produtora de ‘commodities’. Por isso, empresas estrangeiras compram, no Brasil, cada vez mais terras, o que significa uma desapropriação mercantil de nosso território.


* Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Marcelo Barros, de "O amor fecunda o Universo – ecologia e espiritualidade” (Agir), entre outros livros.

A máscara rachou e a corrupção vazou



A máscara rachou e a corrupção vazou
 
Fr. Marcos Sassatelli: Frade Dominicano. Doutor em Filosofia e em Teologia Moral. Prof. na Pós-Graduação em DD.HH. (Comissão Dominicana Justiça e Paz do Brasil/PUC-GO). Vigário Episcopal do Vicariato Oeste da Arq. de Goiânia. Admin. Paroq. da Paróquia N. Sra. da Terra
 
 
Assistimos, nestes últimos tempos, a um espetáculo deprimente. O tema dominante da mídia, nacional e regional, é a corrupção. Parece que estamos mergulhados num mar de lama. A teia de corrupção - comandada pelo empresário Carlinhos Cachoeira - é tão extensa e complexa, que se torna até difícil fazer uma síntese do que está acontecendo.

Antes das minhas reflexões, para apresentar o "estado da questão” sobre o caso Carlinhos Cachoeira, sirvo-me de uma reportagem da Folha de S. Paulo. "Cachoeragate/O esquema. A Máquina de Cachoeira. Entenda como operava, segundo a Polícia Federal, o esquema montado pelo empresário para que políticos atuassem em favor de seu grupo no Congresso e em Governos estaduais”.

A respeito da Operação Monte Carlo: Após 15 meses de investigação, a Polícia Federal (PF) prendeu, em fevereiro deste ano, o empresário Carlos Augusto Ramos, o Carlinhos Cachoeira. O contraventor tem 48 anos de idade, herdou do pai Sebastião as atividades do jogo do bicho nos anos 1960 - 1970 e ajudava a recolher apostas nas bancas de Anápolis - GO. "Ganhou notoriedade em 2004, quando veio a público um vídeo de 2002 em que negociava propina para fazer negócios no Governo do Rio. Seu interlocutor, Waldomiro Diniz, mais tarde foi assessor do ex-ministro José Dirceu”. Segundo a apuração feita, "ele explorava jogos ilegais e tinha um laboratório farmacêutico, entre outros negócios. Nos dias seguintes, diversas relações de Cachoeira vieram à tona”.

A respeito dos Políticos envolvidos: "Escutas telefônicas feitas pela PF mostram que Cachoeira tinha influência sobre políticos que defendiam interesses de seu grupo no Congresso e em Governos estaduais. A relação que mais ganhou destaque foi com o senador Demóstenes Torres”. "Políticos receberam ao menos R$ 780 mil em doações de firmas contratadas pelo grupo de Cachoeira e abastecidas por recursos cuja origem é a Delta, segundo a PF”.

A respeito dos Governos envolvidos: "Segundo as investigações, Cachoeira tinha pessoas de sua confiança em postos-chave dos Governos de Goiás e do Distrito Federal, além de influência em Órgãos federais, como a Anvisa”. A PF, "com a autorização da Justiça, gravou desde 2009 conversas de Cachoeira e de pessoas que trabalhavam para ele com políticos e empresários”.As gravações "sugerem relação entre o grupo e os governadores (de Goiás e do Distrito federal), mas não mostram conversas diretas entre eles. Os dois admitem contatos ocasionais com Cachoeira, mas negam influência dele em seus Governos”.

A respeito das Empresas envolvidas: "As investigações sugerem também que o grupo trabalhou para defender interesses da construtora Delta nos Estados onde ela tinha contratos. A PF suspeita também que o laboratório Vitapan era usado por Cachoeira para lavar dinheiro do jogo ilegal”. Sempre segundo a PF, "Cachoeira controlava uma rede de empresas de fachada que movimentaram milhões de reais nos últimos anos. Pelo menos R$ 39 milhões foram repassados pela construtora Delta para elas” (Folha de S. Paulo, 20/04/12, p. A8. Vejam, na íntegra, os documentos da Operação Monte Carlo, nos sites: www.jb.com.br/pais/noticias/2012/04/04e www.leidoshomens.com.br).

No dia 19 do mês corrente, com o apoio de 72 dos 81 senadores e de 396 dos 513 deputados, foi criada a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI), que vai apurar a ligação de políticos e agentes públicos com Carlinhos Cachoeira. O documento de criação da CPMI especifica como alvo da investigação pelo menos 15 tipos de crimes cometidos pelo contraventor e seu grupo: tráfico de influência, fraude nas licitações, corrupção e formação de quadrilha, entre outros. Especifica também a necessidade de investigar todas as empresas "associadas" a Cachoeira, o que inclui a Delta Construções, maior empreiteira do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). O documento se refere a "empresas supostamente legais, controladas por Cachoeira ou que a ele estejam associadas, direta ou indiretamente". E afirma: "Urge enfrentar o desafio de destrinçar as relações entre o poder público e as atividades do senhor Carlos Augusto Ramos". O enfrentamento da ligação do contraventor com agentes públicos "é ponto de honra para o Congresso Nacional". "Está em causa o resguardo da própria lisura do devido processo legislativo".

Será que podemos acreditar nas palavras dos parlamentares? Será que é isso mesmo o que eles querem ou será que eles (o que é mais provável) não estão debochando da nossa cara? Vejam o cúmulo do absurdo e do descaramento. A CPMI, criada para investigar os negócios do empresário Carlinhos Cachoeira, terá entre seus integrantes "fichas-sujas”: o ex-presidente Fernando Collor (PTB-AL), que foi afastado do cargo por corrupção e hoje é senador, e outros 16 parlamentares com pendências na Justiça, como os senadores Romero Jucá (PMDB-RR) e Cássio Cunha Lima (PSDB-PB) (Cf. Folha de S. Paulo, Ib., p. A4). É muita maracutaia! É muita falta de respeito para com o povo!

Diversas pessoas, diante dessa teia de corrupção (lembremos também o "mensalão” e outros escândalos de corrupção) ficam surpresas e decepcionadas com determinados políticos, que sempre se apresentaram como defensores da "moralidade”. É compreensível, mas não podemos esquecer que, atrás dessa máscara de "moralidade”, existe "um sistema econômico iníquo”(Documento de Aparecida - DA, 385), ou melhor, um sistema socioeconômico, político, ecológico e cultural iníquo, corrupto, podre e imoral. A iniqüidade, a corrupção, a podridão e a imoralidade são sistêmicas, estruturais. Os atos de corrupção - que mais aparecem - são simples vazamentos (erupções) desse sistema. A máscara rachou e a corrupção vazou. Para os políticos e agentes públicos desse sistema iníquo, o importante não é "ser éticos”, mas "parecer éticos”.

Colaborar, com o nosso voto e a nossa prática política para fortalecer esse sistema dominante, é um crime. Unidos e organizados - os Movimentos Sociais Populares, os Sindicatos autênticos (sobretudo de Trabalhadores), as Igrejas, as Pastorais Sociais e todas as pessoas que acreditam num mundo novo - precisamos tomar consciência da urgente necessidade de aproveitar os espaços e as brechas possíveis (abrindo sempre novos espaços e novas brechas) para fazer acontecer um projeto socioeconômico, político, ecológico e cultural alternativo: um projeto popular, justo e fraterno. A esperança já é certeza de vitória.


Goiânia, 25 de abril de 2012.

quarta-feira, 2 de maio de 2012

QUAL SOCIALISMO?



Qual Socialismo?

Leandro Konder


A experiência histórica do movimento socialista, em suas formas cada vez mais variadas, ensina que o socialismo só avança quando consegue se renovar. E, atualmente, ela já ensina, também, que a reflexão socialista precisa de interlocutores “externos”, quer dizer, precisa ─ para renovar-se ─ do diálogo com linhas de pensamento não comprometidas com os projetos socialistas.

Renovar-se não é uma operação simples, automática; é um processo nque passa por autocríticas intranqüilizadoras, freqüentemente dolorosas. Em sociedades politicamente complexas, os sujeitos empenhados em transformar as relações sociais precisam se criticar mutuamente, se reeducar, uns aos outros. A eficácia da autocrítica depende da liberdade de crítica assegurada aos outros. A verdadeira renovação passa a depender, cada vez mais, do pluralismo.

Por isso, a vanguarda do pensamento marxista está muito empenhada, hoje, numa revalorização do pluralismo. E os marxistas de vanguarda, na Itália, já se deram conta da extrema importância de um interlocutor como Noberto Bobbio.

Bobbio, pensador político, professor de filosofia do direito, é um homem de imensa cultura e estupenda honestidade intelectual. É um liberal que estudou Marx, conhece os meandros do pensamento marxista e não se sente nem um pouco constrangido em acolher tudo o que nele lhe parece bom. É exatamente essa abertura em face de Marx que lhe permite, por outro lado, questionar de maneira bastante despreconceituosa e fecunda uma série de aspectos da perspectiva filosófica e política do pensador alemão.

A história do século XX mostra que a conquista do poder, nas revoluções, não resolve o problema de como exercê-lo. Nenhuma revolução, até agora, enfrentou seriamente a questão das garantias contra os abusos do poder. A teoria da ditadura do proletariado deu no que deu. Bobbio, então, nos incita a refletir sobre a concepção do Estado em Marx: uma concepção que precisa de desenvolvimentos, complementações e ─ também ─ correções, revisões.

Não temos o direito de nos esquivar ao exame das questões relativas a como o poder se exerce. Os riscos de uma omissão, nas condições atuais, seriam enormes. A humanidade está duplamente ameaçada de extinção, diz Bobbio: pela guerra atômica e pelo esgotamento dos recursos do planeta. Seríamos sumamente insensatos se não nos dispuséssemos a aprender um pouco sobre as condições ─ não necessariamente mais humanas, porém menos ferozes ─ que podemos criar para o exercício do poder.

A tarefa é grave e delicada. Cumpre enfrentá-la com prudência. Bobbio sabe disso e evita se apresentar como “dono da verdade”. Seu método lembra o do velho Sócrates: ele aparece diante de nós como um arguto perguntador. Não é casual que todos os ensaios deste volume tenham títulos interrogativos. Qual Socialismo? ─ como notou Celso Láfer ─ contém perguntas “incisivas e bem formuladas”, relativas a temas para os quais Bobbio não pretende ter “respostas definitivas”.

[Texto de orelha de Leandro Konder In BOBBIO, Noberto. Qual socialismo?: debate sobre uma alternativa. Tradução de Iza de Salles Freaza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.]


Leandro Konder é filósofo marxista e escritor.

terça-feira, 1 de maio de 2012

Não estamos condenados ao capitalismo perpétuo

Não estamos condenados ao capitalismo perpétuo

Leandro Konder

O que há de mais dramático na história é o fato de que tudo que aconteceu no passado poderia ter acontecido de maneira um pouco diferente. Dessa constatação, devemos extrair a conseqüência: tudo que está acontecendo hoje poderia estar acontecendo de maneira um pouco diferente.

Antigamente (lá pelo final do século 19), alguns autores marxistas, preocupados em defender a inteligibilidade da história, recusando-se ─ com razão ─ a entregá-la ao império do acaso, sustentaram uma versão determinista do materialismo histórico. Convenceram-se de que, no movimento da história, tudo fazia sentido porque tudo correspondia a causas objetivamente necessárias.

Essa concepção determinista ajudava os socialistas a suportar a repressão, a superar o desânimo causado pelas derrotas. Pensavam eles: estamos aqui, sendo presos, torturados, porém, de fato, estamos na crista da onda constituída pela classe operária, que nos apóia e que necessariamente vai nos levar à vitória.

Esse pensamento tinha um grave inconveniente: na medida em que a onda proletária supostamente os impulsionava, os socialistas não eram suficientemente desafiados a tomar iniciativas, a assumir riscos, a ser criativos. Suportavam os maus momentos, mas não criavam os bons momentos na freqüência desejada.

Diversos autores combateram o determinismo no campo da história política e cultural. Antonio Gramsci, Georg Lukács, Walter Benjamin, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Jean Paul Sartre contribuiram decisivamente para esse combate.

Na Alemanha, impõe-se a recordação da advertência de Rosa Luxemburgo: “Podemos ir para o socialismo, porém também podemos escorregar para a barbárie”. No Brasil, não podemos deixar de lembrar, com orgulho, a rica obra crítica de Antonio Candido.

A partir de determinado período, na segunda metade do século 20, o determinismo foi se deslocando da esquerda para a direita. Até chegar à figura de Margareth Thatcher, que foi primeira-ministra da Inglaterra e era chamada de Dama de Ferro.

Depois de aprofundados estudos, que lhe tomaram cerca de 10 minutos por semana, a Dama de Ferro chegou à conclusão de que os fatos e os dados estavam mostrando com clareza que não havia alternativa para o capitalismo.

O movimento inexorável da história, afinal, tinha conduzido a humanidade a seu destino natural, a sua meta definitiva. Não havia do que reclamar. “There is no alternative (não há alternativa), repetia Thatcher. A frase foi dita por ela tantas vezes que acabou sendo transformada numa fórmula condensada, num apelido composto a partir das letras iniciais de cada uma das quatro palavras: de there is no alternative surgiu TINA.

A política, contudo, é um campo de batalha cruel. Ninguém pode proteger os detentores do poder e os detentores da riqueza contra o desgaste que a história lhes impõe. A erosão não respeita ninguém: nem professores universitários, eruditos, nem torneiros mecânicos escassamente familiarizados com a norma culta do idioma português. Os detentores do poder e da riqueza, mesmo solidamente instalados na direção da sociedade, pedem constantemente a seus ideólogos que lhe dêem apoio teórico.

Recorrem sobretudo aos economistas. E os economistas produzem prontamente uma rica oferta para essa demanda. De Delfim Neto ao engraçado George Vidor, passando por Miriam Leitão, os economistas vão elaborando esquemas explicativos que tendem a anular a esfera das iniciativas político-econômicas mais ousadas, apresentando a submissão de tudo e de todos ao mercado como conseqüência de um processo histórico fatal, inexorável.

É a volta do determinismo. Dessa vez, ele não assegura o avanço do proletariado, não garante aos revolucionários que eles estão na crista da onda, que nada poderá detê-los. Dessa vez, o determinismo ─ globalizado ─ apregoa, nos quatro cantos da terra, que a única sabedoria possível no mundo atual é resignar-se à vida pautada pela vitória do capitalismo.

Se observarmos a situação de um ponto de vista crítico, entretanto, o quadro não nos parecerá tão idílico. Em meados do século 19, Marx fez críticas contundentes ao capitalismo. Afirmou que o mercado, transformado em centro da sociedade, danifica seriamente os valores qualitativos dos seres humanos (reduzindo-os ao dinheiro). Sustentou que a exploração do trabalho pelo capital, nas condições de privilégio da propriedade privada, constitui o fenômeno da mais-valia, incompatível com a remuneração justa. Diagnosticou no capitalismo uma contradição grave entre o caráter social da produção e o caráter individual da apropriação. Marx constatou, também, que, nas condições de hipercompetição, as pessoas não conseguem superar as distorções ideológicas e desperdiçam criatividade (são alienadas).

Em sua história atual (essa mesma que o determinismo se esforça para negar), o capitalismo não resolveu nenhum dos problemas apontados por Marx. De onde seus propagandistas extraem tanta empáfia?


Leandro Konder é filósofo


Fonte: Publicado no caderno Idéias & Livros do Jornal do Brasil de 19 de maio de 2007.

O socialismo em Cuba



Antes da revolução, Cuba era uma espécie de "bordel" dos EUA. O país era uma maravilha, terra do bom tabaco, do açúcar, do rum, da rumba e do chá-chá-chá, com sol o ano inteiro, praias maravilhosas e muita gente animada pelas ruas topando trocar sexo por dólares. A economia da ilha, totalmente controlada pelos yankees, baseava-se principalmente na jogatina e na prostituição.

Foi graças a revolução, que fez de Cuba o primeiro Estado socialista na América Latina, que o país se libertou das garras do imperialismo yankee, alcançando as conquistas sociais que todos nós admiramos, em especial na saúde e educação. O analfabetismo foi erradicado de Cuba. É claro que a Universidade de Havana não compete com Harvard ou Oxford, mas praticamente todos os cubanos sabem ler e escrever e freqüentaram a escola básica, o que não é regra no Caribe e mesmo em algumas nações bem mais ricas. Já no campo sanitário, os indicadores básicos de Cuba são melhores até que o de algumas regiões dos EUA. O serviço de saúde, que é público e gratuito, é considerado o melhor da América Latina, comparavel inclusive ao serviço de saúde dos países desenvolvidos.

Entretanto não podemos esquecer que o regime castrista é uma ditadura de partido único, igual a que existia na antiga URSS. As conquistas sociais da revolução não bastam para justificar o autoritarismo do regime castrista, uma ditadura burocratica herdeira do finado "socialismo real", ou seja, do socialismo que realmente existiu e que não realizou o projeto marxista.

"O regime ideal para Cuba não é o do partido único, como não o é para nenhum país socialista." (Jacob Gorender; em Teoria e Debate numero 16)

O fim do apoio soviético e as reformas dos anos 90

As conquistas da revolução só foram possíveis graças ao apoio que a URSS fornecia para Cuba. Quando o socialismo caiu na URSS, no começo dos anos 90, a economia cubana entrou em colapso, e as conquistas que todos admiram correram sério risco de se extinguir. O regime socialista cubano era totalmente dependente da URSS, tanto que a retirada dos subsídios soviéticos(cerca de 4 a 6 bilhões de dólares anuais entre 1989 e 1993), representou uma perda de, pelo menos, 35% relação ao pico de seu PIB de então, causando sérios problemas de abastecimento e provocando rígidos racionamentos, entre 1989 e 1993, anos de grandes privações para todos, no que foi chamado de "Período Especial". As importações feitas por Cuba caíram de US$ 8,1 bilhões em 1989 para US$ 3,5 bilhões em 1991.

Entretanto, o lider cubano Fidel Castro realizou reformas economicas, e Cuba sobreviveu à brutal queda da URSS porque tomou um rumo “capitalista”: investimentos estrangeiros privadas; dupla economia (área dólar e área peso; depois, área CUC); abertura ao capital e à iniciativa privada na área de serviços e outras etc. Foi dessa maneira, com enormes sacrifícios por parte de uma população fiel à revolução e fortes concessões ao ideal socialista, que o essencial do processo foi salvo.

"O dinamismo atual da capital cubana contrasta com os dias negros do “período especial em tempos de paz”, que se seguiu à queda da URSS. O PIB caiu 35% em apenas quatro anos, em meio a um bloqueio dos Estados Unidos que dura quase meio século. Agora, a mudança se nota nas ruas: vêem-se poucas bicicletas, não há apagões e a “revolução energética” impulsionou a troca, organizada casa a casa, dos antigos eletrodomésticos russos pelos chineses, de menor consumo. Cuba produz ao redor de 50% de seu consumo de petróleo, extraído em associação com empresas estrangeiras, frente à importação de quase 100% no início da década de 90. O déficit é coberto com os 100 mil barris diários enviados pela Venezuela bolivariana, na base de um acordo de cooperação firmado em outubro de 2000, que dá um prazo de pagamento de quinze anos, com taxa de juros de 2% ao ano." (Pablo Stefanoni; em Encruzilhada em Havana)

As reformas promovidas pelo lider Fidel Castro não chegam aos pés da Nova Política Economica(cuja sigla em inglês é NEP), adotada pelos soviéticos entre 1921 e 1928. Apesar dos investimentos estrangeiros privados e da adoção do CUC, a abertura para a iniciativa privada foi pequena.

Hoje já existem em Cuba, 117 atividades privadas autorizadas, com 208 mil pessoas registradas. Essas são as atividades que podem ser realizadas por particulares - oficinas, pequenos negócios, prestação de alguns serviços. A atividade que mais se expande é a dos restaurantes, chamados Paladares (nome alusivo a uma telenovela brasileira). Como uma forma de limitar a iniciativa particular, os paladares somente podem ter 12 cadeiras, e só devem funcionar com mão-de-obra familiar. Foram estabelecidas as Unidades Básicas de Produção Cooperativa (UBCP), em parte das terras ocupadas até então por granjas estatais. Entre setembro de 1993 e agosto de 1995, foram organizadas 3800 UBPCs, com 64% do fundo estatal de terras. Apesar da abertura ser pequena, foi graças a essas reformas que o socialismo se manteve de pé em Cuba. Assim como a bem sucedida experiência da NEP, essa retificação cubana demonstra a necessidade do mercado e da iniciativa privada em uma economia socialista, principalmente na sua fase inicial.

As novas reformas

Após a renúncia de Fidel, em fevereiro de 2008, o governo do presidente Raúl Castro realizou reformas econômicas ampliando a participação da iniciativa privada, principalmente no campo, e liberando a venda de eletrodomésticos, celulares e computadores, assim como acabou com o igualitarismo salarial.

Em 2011, o governo cubano consolidou essa política reformista com a realização do VI Congresso do Partido Comunista Cubano. Essas reformas são importantes e precisam ser ampliadas, Cuba precisa de uma experiência semelhante a NEP(sigla em inglês da Nova Política Economica, adotada pelos soviéticos entre 1921 e 1928), para reeguer plenamente a economia, melhorando o nivel de vida da população e reduzindo a burocracia.

O governo Raúl Castro também corrigiu o erro histórico da revolução em perseguir os homossexuais e travestis, permitindo operações de mudança de sexo e o debate sobre a aprovação de leis que criminalizem a homofobia, garantindo inclusive a união civil homoafetiva.

Cuba precisa dessas reformas, e mais, precisa de reformas políticas que introduzam uma autêntica democracia socialista, permitindo assim o pluripartidarismo, com eleições e sindicatos livres, e a legitima e efetiva participação dos trabalhadores no processo político, garantindo assim a hegemonia socialista sobre as reformas economicas.

A NOVA POLÍTICA ECONOMICA



O fracasso da primeira experiência de construção do socialismo deveu-se a dois fatores: o primeiro foi a ausência de democracia, e o segundo foi a excessiva burocratização do Estado e da economia, resultado da completa estatização da economia, pois ao invés de socializar a propriedade dos meios de produção, os bolcheviques a estatizaram.

Durante a Guerra Civil Russa(1918-1921), os bolcheviques buscaram construir o socialismo por decreto, estabelecendo a completa estatização da economia e o sistema de requisições forçadas de todo excedente agricola. Era o chamado "Comunismo de Guerra", que acabou promovendo a ruptura da aliança operário-camponesa. Os camponeses estavam dispostos a pagar um tributo à revolução (em percentagem da colheita), porque não queriam perder suas terras, permitindo uma restauração czarista, mas não queriam entregar todo o excedente agrícola, arbitrado segundo critérios extorsivos pelos agentes do poder soviético vindos da cidade.

O resultado foi a eclosão de várias revoltas no campo, sufocadas brutalmente pelo Exército Vermelho, e a fome que tomou conta do país, pois o campesinato deixou de produzir.

A NOVA POLÍTICA ECONOMICA

"O socialismo não pode ser imposto por decreto: é um processo em desenvolvimento". (Salvador Allende) 


Felizmente os bolcheviques corrigiram esse erro ao estabelecer a Nova Política Economica, cuja sigla em inglês era NEP. Uma economia mista, onde o mercado e a planificação da economia coexistem, com a propriedade coletiva e estatal sendo implementada nos setores estratégicos, enquanto a pequena e média propriedade privada continuava funcionando em outros setores, especialmente na agricultura, sobre a regulação do Estado soviético.

A princípio foi considerada por Lenin como um "recuo estratégico", pois assim como a revolução internacional recuara, também os bolcheviques recuariam, até conjunturas mais favoráveis, mas ordenadamente, isto é, mantendo o monopólio político. A NEP teve excelentes resultados imediatos. Sociedades tecnológicas rudimentares, onde a força de trabalho tem papel central, podem, vantajosamente, recuperar, com rapidez seus níveis de produção, desde que garantido um mínimo de "paz social". A NEP assegurava este mínimo e a imensa Rússia rural reagiu positivamente. A fome foi vencida. O racionamento foi suspenso. Já em 1924-1925, os índices de produção de 1913 eram alcançados e ultrapassados.

O governo ampliou as concessões: relaxou o controle dos preços, reduziu impostos, ampliou o período do arrendamento de terras e da contratação de mão-de-obra, estimulou a liberdade comercial. Assim, a NEP acabou se tornando o caminho para a construção do socialismo, após ter sido teorizada pelo revolucionário marxista Nikolai Bukharin(foto), deixando de ser tida como um recuo, para tornar-se uma política estratégica de aliança de classes do proletariado com o campesinato.

Segundo Bukharin, o rompimento com o campesinato provocaria um trauma irreparável. O Estado tenderia a se ampliar de forma desmesurada e isto seria "menos racional" do que a estrutura anárquica de produção de mercadorias. Mesmo porque o mercado, desde que submetido a controles, era mais sensível às demandas dos consumidores do que um Estado supercentralizado. Bukharin argumentava que os consumidores eram a razão de ser da economia soviética. A perspectiva de construção do socialismo partia, assim, do mercado e evoluía, sem negá-lo de forma absoluta, mas subordinando-o, crescentemente, em direção a formas coletivas.

Mas infelizmente a burocracia já existente e a própria cultura do bolchevismo não permitiram que essa política fosse consolidada. Então em 1928, Stalin promoveu uma 'guinada esquerdista', adotando a coletivização forçada no campo e a completa estatização da economia, restabelecendo dessa forma a política equivocada de construção do socialismo por decreto. Com isso foi promovido um verdadeiro massacre no campo, onde morreram mais de 10 milhões de camponeses, seja em virtude da repressão ou pela fome. O campesinato acabou regredindo a condição de servidão, o que acabou promovendo a ruptura definitiva da aliança operário-camponesa, levando o partido comunista a se afastar das massas populares e a burocracia se consolidar no poder absoluto.

Esses dois fatores, ausência de democracia política e completa estatização da economia, constituem a base da burocratização do Estado soviético, e consequentemente dos demais Estados que seguiram esse modelo, o que levou a derrota da primeira experiência de construção do socialismo.

O socialismo não pode ser construido por decreto, precisa ser construido processualmente, como a própria história comprova ao observarmos o sucesso da Nova Política Economica, adotada entre 1921 e 1928. Uma economia mista, onde o mercado e a planificação democrática da economia coexistem, com a propriedade coletiva ou social sendo implementada nos setores estratégicos, enquanto a pequena e média propriedade privada continuam funcionando em outros setores, sobre a regulação do Estado proletário.


A esquerda precisa romper com a herança stalinista, abandonando o fetiche pelo estatismo. O mercado e a propriedade privada devem coexistir com a planificação e com a propriedade social na futura sociedade socialista por um bom tempo, principalmente na sua fase inicial.


"O socialismo não pode, nem deve eliminar o mercado de imediato. Precisará conviver com o mercado e tirar proveito dele durante um tempo certamente longo. Só que, para ser compatível com o socialismo, precisará ser um mercado regulado, direcionado pelo planejamento do Estado e refreado no que se refere aos aspectos socialmente negativos." (Jacob Gorender; em Teoria e Debate nº 16)

BRS: cinco falácias do sistema adotado pela prefeitura em algumas vias do Rio


BRS: cinco falácias do sistema adotado pela prefeitura em algumas vias do Rio

*Eliomar Coelho - 26/04/2012
O Bus Rapid System, nome pomposo para as boas e velhas faixas seletivas nas nossas vias urbanas, tem sido muito louvado na mídia e na propaganda oficial da prefeitura, que é veiculada pela entidade representativa dos empresários de ônibus, a Fetranspor. O que é do agrado da Fetranspor não pode ser do agrado do usuário. Senão, vejamos:

1. Mais comodidade aos usuários – Em todos os corredores onde o BRS já foi implantado, houve redução do número de pontos por linha. Isso significa que, se antes você andava alguns poucos metros para pegar sua condução, essa distância pode ter até dobrado por causa dessa “reorganização”. Andar mais, por mais tempo é cômodo para os usuários de transporte? Só falta dizer que é bom para a saúde! Além do mais, com a diminuição no número de pontos por linha, a quantidade de passageiros por ponto de ônibus, principalmente nos horários de pico, chegou a dobrar. Some-se a isso a redução da frota em diversas linhas e vemos um verdadeiro caos na hora do trabalhador voltar pra casa. Pontos lotados, ônibus superdisputados e a “lei do mais forte” acaba prevalecendo. Isso é comodidade?

2. Aumenta a eficiência do sistema – É claro que com linhas mais “enxutas”, parando menos, com menos carros rodando, fica mais fácil para a empresa coordenar suas operações e regular os horários dos ônibus. Mas a quem interessa essa eficiência? Se ela redunda nos problemas já mencionados e vários outros, quem tem a comemorar com esse sistema?

3. Melhora a fluidez do tráfego – Na Zona Sul, há quem diga que o BRS salvou o tráfego local, melhorando a fluidez e diminuindo o tempo de travessia dos carros pelos principais corredores. Mas veja só: se esta área da cidade já registrava excesso de ônibus em circulação, a simples “racionalização” das linhas já seria suficiente para isso. Essa racionalização ganha o seu conteúdo de marketing com a logomarca do BRS. Já no Centro da Cidade, que a demanda é muito maior e a rede viária não é tão retilínea como a da Zona Sul, os gargalos viraram um verdadeiro pesadelo tanto para pedestres, quanto para motoristas e passageiros do sistema de transporte.

4. Diminui o tempo de viagem – Os dados apresentados foram mensurados pelos próprios operadores. Ainda que consideremos dignos de confiança, esse dados se referem ao tempo de viagem dos veículos; não se referem ao tempo médio de viagem dos passageiros. O que isso significa? O tempo de locomoção até o ponto de ônibus aumentou, o tempo de espera no ponto aumentou, os congestionamentos na maior parte das vias estruturais da cidade aumentou. Então como pode o tempo médio de viagem ter diminuído? Esse dado só pode estar relacionado ao tempo médio de viagem dos veículos, o que está longe de ser considerado um parâmetro justo de medida do conforto para os passageiros!

5. Barateia a tarifa – Essa, de tão falaciosa, parou até de ser usada pelo discurso oficial. Além de termos um dos ônibus mais caros do Brasil, estamos pagando diversos subsídios para os mesmos empresários de sempre continuarem prestando os mesmos péssimos serviços de sempre. Primeiro, a prefeitura fez aprovar na Câmara Municipal uma redução de impostos para as empresas que significou milhões de reais a menos nos seus custos, ao mesmo tempo em que concedeu um aumento de mais de 10% na tarifa, em uma só tacada. Depois, junto com a lei da meia passagem para estudantes universitários, a prefeitura aprovou um subsídio direto, dinheiro público que será repassado aos empresários como forma de “compensar” pelas meias passagens.

Ou seja, aos empresários, tudo; para a população, o BRS.

*Eliomar Coelho é vereador pelo PSOL no Rio de Janeiro

O autoritarismo em Marx


O filósofo e revolucionário alemão Karl Marx, afirmava que “a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado”. Mas ditadura do proletariado não era para Marx, um regime totalitario e burocratico de partido único, como o que existiu na antiga URSS e no Leste Europeu. Para Marx, ditadura do proletariado era uma ditadura de classe, ou seja, o Estado operário existente em uma sociedade pós-capitalista, onde o proletariado havia se tornado a classe dominante. Essa ditadura deveria se apresentar sob a forma de governo representativo, como ocorre no capitalismo(que segundo Marx é uma ditadura da burguesia), garantindo a mais ampla liberdade para os trabalhadores. O objetivo era garantir a expropriação dos capitalistas e o processo de transformação revolucionária da propriedade privada sobre os meios de produção em propriedade social. Engels é muito claro a esse respeito: "somos obrigados a nos servir dele [o Estado] na luta, na revolução, para reprimir pela força os adversários". (Carta de Engels a A. Bebel, 18-28 de março de 1875).

Marx e Engels nunca defenderam regime de partido único. Entretanto é obvio que os fundadores do socialismo científico não eram democratas e sim revolucionários, que defendiam a violência como instrumento de ação política. Mas é preciso deixar claro que nem de longe defenderam algum tipo de regime totalitario.

O historiador Francisco Buey, em "Marx(sem ismos)" reconhece o autoritarismo de Marx, embora sublinhe que por autoritarismo não se deve entender totalitarismo. Buey reconhece em Marx o traço autoritário, presente no aproveitamento do modelo jacobino francês no encaminhamento político da luta social. Relembra que, embora Marx tenha admitido a possibilidade de conquista pacífica do poder pelo proletariado (justamente nos países mais avançados em emancipação política, via voto), não cabe falar em um Marx democrata, mas em um Marx revolucionário e, portanto, capaz de defender o “terrorismo revolucionário”, filho que foi de um século em que a guerra e as “revoluções” compunham a regularidade do cotidiano. Mas em hipótese alguma defendia regime de partido único, até porque não defendia um partido exclusivo dos comunistas, pois afirmava que os comunistas eram o setor mais combativo e organizado do Partido Operário.

Atento sempre ao “leitor contemporâneo”, Buey salienta a concepção problemática que Marx tinha de democracia, enquanto coordenada relativa à forma política. Diante de certos juízos de Marx, como aquele em que ele defende a violência como a célebre parteira de “toda velha sociedade que está grávida de uma sociedade nova”, Buey concorda que “hoje em dia, quando alguém chega nesse ponto, fecha o livro”. Buey recupera, no entanto, que o próprio Marx reconhece a existência de diferentes formas de “gravidez” e que, para algumas delas, admite outra parteira, a via “pacífica”.

O autoritarismo de Marx é totalmente compreendido a luz da história, uma vez que a democracia burguesa no século XIX também era autoritaria, pois impedia a livre organização dos trabalhadores, até mesmo excluindo-os do processo político através do voto censitário, onde apenas quem tinha propriedade e pagava impostos podia votar e ser eleito. A questão social era considerada caso de policia, com as greves e manifestações operárias sendo brutalmente reprimidas. A jornada de trabalho era de até 16 horas diarias, não havia direito a férias e as condições de trabalho eram desumanas, com salários que garantiam apenas o mínimo necessário para sobreviver. Não havia previdência social e as mulheres ganhavam muito menos que os homens, apesar de trabalharem nas mesmas condições.

Mas se Marx e Engels não defendiam regime de partido único, como os países socialistas adotaram esse modelo? O revolucionário russo Vladimir Lenin, fundador e lider do Partido Bolchevique, reinterpretou a ditadura do proletariado como ditadura do partido do proletariado, o que originou o regime de partido único após a vitória da Revolução Russa de Outubro de 1917, que serviu de modelo para todas as demais revoluções socialistas ocorridas no século passado. E essa ditadura acabou resultando no totalitarismo stalinista.

Dentro do marxismo clássico - e também em Lenin -, a classe operária é portadora do universal, porque quando se emancipa, está emancipando o conjunto da sociedade. O problema é que Lenin não acredita na capacidade da classe operária para exercer o poder na fase inicial de construção do socialismo. Os trabalhadores, segundo Lenin, "não se desembaraçarão facilmente de seus preconceitos pequeno-burgueses", precisando ser "reeducados sobre a base da ditadura do proletariado". Este poder deveria ser exercido pela vanguarda da classe - já livre da ideologia burguesa -, isto é, pelo partido desta classe. Assim, a fórmula leninista da ditadura do proletariado acaba resultando na ditadura do partido do proletariado, pois os interesses históricos de partido e classe são os mesmos, com a diferença de que o conjunto da classe ainda não descobriu sua "missão histórica", a ser revelada pelo partido.

Neste ponto, é importante frisar, não houve um desvio do stalinismo em relação ao leninismo, mas sim sua continuidade, com todos os agravantes da personalidade autoritária de Stalin. O regime bolchevique foi pré-totalitario, pois preparou o verdadeiro totalitarismo dos grandes campos de trabalho forçado e do genocidio da era stalinista. Citando o filósofo marxista Ruy Fausto: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (Ruy Fausto; "Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo Igualitarista")

O que fracassou no Leste Europeu e na antiga URSS foi a releitura do marxismo realizada por Lenin e seus "camaradas" do Partido Bolchevique, que originou o regime totalitario e burocratico de partido único, que alcançaria o ápice do terror e da barbárie durante a época do stalinismo. Portanto não basta ser anti-stalinista, é preciso se opor ao leninismo. A esquerda precisa abandonar a herança autoritária do bolchevismo, resgatando o melhor do pensamento marxista na luta por um socialismo renovado. É preciso seguir o exemplo do historiador marxista Jacob Gorender, que em "Marxismo sem utopia" faz uma dura critica ao bolchevismo.

"O que deixei claro é que não se deve ter um modelo como o do Partido Bolchevique: uma direção de revolucionários profissionais apoiada numa rede de células, organizações e pessoas que não são profissionais, que estão na vida comum, e que se tornam militantes do partido. Esta concepção altamente centralizadora é indissociável do partido único, do autoritarismo e do arbítrio, como ocorreu na União Soviética. O partido único ditatorial já estava implícito na lógica do Partido Bolchevique desde o momento em que ele se propôs a tomada do poder. Rosa Luxemburgo percebeu isso, embora o dissesse de maneira muito simplificada. Da minha parte, militei em partidos inspirados por este modelo e vivi suas contradições.

O modelo bolchevique incorporou, em sua visão da ação política, um centralismo enorme, bem como a idéia de que poderia dirigir sozinho a sociedade. Tomemos, por exemplo, a questão da dissolução da assembléia constituinte na Revolução Russa: o problema não foi tê-la dissolvido, mas não se ter nenhuma proposta democrática alternativa. Os sovietes, desde a tomada do poder, passaram a ser uma correia de transmissão do partido e terminaram esvaziados. Em seguida, os sindicatos e as outras organizações de massa foram se tornando o que Lenin tinha em vista: correias de transmissão do partido único. Quando, em 1921, as tendências foram proibidas dentro do partido bolchevique, a idéia era de que isto seria temporário; mas o temporário se tornou permanente. Essas coisas práticas, mais do que as declarações, formam aquilo que chamo de modelo bolchevique. É isto que deve ser evitado."

(Jacob Gorender, em Teoria e Debate nº 43) 


Resgatar o melhor do marxismo não significa fazer uma leitura dogmatica do seu pensamento. O capitalismo se democratizou em virtude da luta heróica dos movimentos operários e populares, deixando de ser um "mero comitê executivo" da burguesia. E mais, o filósofo e revolucionário italiano Antonio Gramsci enriqueceu o pensamento marxista ao abordar a questão do consenso, o que permite o abandono das posições autoritárias de Marx, que são anacrônicas diante da realidade da luta de classes no século XXI. A partir de Gramsci, se tem a certeza que numa situação de capitalismo avançado e de sociedade democratizada, o caminho para o socialismo deverá se dar de maneira progressiva e pacífica, através da luta pela hegemonia do proletariado.

O cientista político Carlos Nelson Coutinho, grande nome do marxismo em nosso país, reconhece esse fato em entrevista publicada na revista Teoria e Debate nº 51, quando respondeu a seguinte pergunta: "Há algo anacrônico na perspectiva expressa no Manifesto Comunista?"  


Carlos Nelson Coutinho: "Há duas coisas: as teorias do Estado e da revolução. A teoria do Estado como simplesmente o comitê executivo da burguesia, que se vale apenas da opressão como recurso de poder; e a idéia da revolução como uma guerra civil oculta que explode violentamente. Em 1848, a maior parte da Europa ainda estava sob o absolutismo; e, onde havia liberalismo, havia voto censitário, ou seja, os parlamentos eram eleitos apenas pelos proprietários. Era então correto dizer que o Estado não passava de um comitê executivo da burguesia. Mas, já na segunda parte do século XIX, começou a se dar uma socialização da política: o sufrágio tornou-se cada vez mais universal, foram criados partidos políticos de massa, os sindicatos puderam se organizar legalmente. No prefácio que escreveu em 1895 para a reedição de ' Luta de Classes na França' de Marx, Engels – no ano de sua morte – já revela ter se dado conta desta socialização da política e, portanto, da necessidade de rever os conceitos que ele e Marx haviam formulado por volta de 1848.

Mas foi Gramsci, em seus 'Cadernos do Cárcere', quem efetivamente elevou a conceito esta nova constelação histórica. Gramsci chama de "sociedade civil" as organizações que resultam desta socialização da política: sindicatos, partidos, associações em geral etc. E, em função disso, reelaborou a teoria marxista do Estado. Gramsci criou uma nova teoria marxista do Estado. Ela é marxista porque continua dizendo que o Estado é, em última instância, ainda que não mais em primeira, um Estado de classe. Mas o modo pelo qual ele hoje é um Estado de classe é diferente. O Estado se tornou um Estado ampliado: é obrigado a levar em conta, enquanto momento da constituição das relações de poder na sociedade, os organismos da sociedade civil. A forma pela qual o Estado opera hoje não é mais só por meio da violência, mas também da persuasão e do consenso."