"Ser marxista é, antes de mais nada, ser anticapitalista, ou seja, lutar pela construção de uma sociedade sem classes, que suprima a exploração do homem pelo homem e a propriedade privada dos grandes meios de produção, criando condições para que as relações entre os homens sejam fundadas na solidariedade e não no egoísmo do mercado. Claro, ser marxista não é repetir acriticamente tudo o que Marx disse. Marx morreu há cerca de 120 anos e muita coisa ocorreu desde então. Mas, sem o método que ele nos legou, é impossível compreender o que ocorre no mundo. Ele nos disse que o capital estava criando um mercado mundial, fonte de crises e iniqüidades, e nunca isso foi tão verdadeiro quanto no capitalismo globalizado de hoje. Falou também em fetichismo da mercadoria, na conversão do mercado num ente fantasmagórico que oculta as relações humanas, e nunca isso se manifestou tão intensamente quanto em nossos dias, quando lemos na imprensa barbaridades do tipo 'o mercado ficou nervoso'." (Carlos Nelson Coutinho)

domingo, 22 de abril de 2012

CENTRALISMO DEMOCRÁTICO OU BUROCRÁTICO?



CENTRALISMO DEMOCRÁTICO OU BUROCRÁTICO?

Sergio Granja*

"Ortodoxia é coisa de igreja. E da velha igreja."
(Carlos Marighella)
 




 A idéia de um destacamento de vanguarda disciplinado, eficiente, levou Lênin a formular, nas condições históricas da Rússia de 1917, o princípio do centralismo democrático. Esta é, portanto, uma formulação não marxista, mas leninista. E mais: essa idéia tornou-se a pedra de toque da concepção leninista (e não marxista) do partido de novo tipo.

Lênin colocou o problema em termos relativamente simples. Quando o partido precisa tomar uma decisão, deve reunir os seus membros, promover um debate livre, amplo, profundo, que permita o exame exaustivo da questão, para, finalmente, como coroamento do processo de discussão, colocar em votação as diversas posições em disputa. Esse é o momento da democracia. Uma vez consolidada uma maioria, a minoria a ela deve se subordinar. Esse é o momento do centralismo. Daí a fórmula leninista do centralismo democrático.

O princípio é cristalino. Mas que partido era esse? Ele foi pensado como instrumento para a realização de qual tarefa política? Sem me alongar, acho que posso dizer que esse era um partido para a insurreição. E foi eficaz no que se propunha. Era um partido talhado para a luta política nas condições históricas do que Gramsci chamou de "Oriente", na qual o Estado era tudo e a "sociedade civil" gelatinosa, o que permitia que a luta política fosse conduzida como uma "guerra de movimento". Lá, o Estado era fundamentalmente um aparelho repressivo. A tomada do poder burocrático-militar de Estado se colocava como objetivo central. O requisito era a presteza de agrupar forças no momento e no ponto decisivos. Em contrapartida, dizia Gramsci, no "Ocidente", só a "guerra de posição" é viável. Porque aí o Estado é "sociedade política + sociedade civil", é "coerção + consentimento". Tem-se uma formação social solidamente articulada pela ideologia. Em conseqüência, os aparelhos ideológicos de Estado assumem uma importância estratégica. O poder de Estado se legitima em uma zona de hegemonia sócio-política que abarca toda (ou quase toda) a sociedade. É preciso, nessas condições, ter um partido capaz de disputar a hegemonia na sociedade. E então já não se postula um destacamento de vanguarda disciplinado, eficiente, porque isso já não teria eficácia nas condições da democracia política.

Nessa nova situação, ganha o primeiro plano a necessidade de um partido de massas, articulado por quadros intermediários, capaz de realizar tarefas de convencimento. Um partido necessariamente de massas porque a capilaridade, a disseminação, é condição indispensável para se fazer o trabalho de convencimento em toda a extensão da sociedade. O requisito é a capacidade de argumentação, a perseverança para persuadir e a tolerância com a diferença. Nesse partido, o centralismo democrático não tem mais vigência. É um anacronismo. A unidade desse partido não se faz pela subordinação imposta administrativamente pela maioria à minoria, mas pelo consenso tecido em torno das questões capitais para o desenvolvimento da luta política.

Isso do ponto de vista da eficácia, da organização servindo à política. Mas a questão pode e deve ser analisada sob diversas angulações. A da liberdade, por exemplo. Como se sabe, a questão da liberdade é central para o comunismo de Marx: a utopia comunista não é a igualdade (que, no máximo, é um pressuposto), mas a liberdade do homem. E é por esse prisma que também é preciso discutir o princípio da subordinação da minoria à maioria. Que liberdade é essa na qual a minoria é obrigada a calar as suas convicções em nome de uma decisão da maioria? Então o militante socialista luta para ser amordaçado quando mais precisa expressar as suas opiniões, que é exatamente quando discorda da maioria dos seus companheiros? Mas a idéia do centralismo democrático, objetivando a unidade de ação, não só obriga o dissidente a calar suas opiniões. Quer mais: quer obrigá-lo a pronunciar as palavras que repudia. Não há violência maior. Como diria Roland Barthes, "o fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer".

Historicamente, o centralismo democrático tendeu para o centralismo burocrático. Essa tendência degenerou na concepção stalinista de partido. Houve o deslocamento do centro da discussão política das organizações de base para as direções. E chegou-se ao cúmulo do Secretário Geral decidir sem contestação. Conseqüentemente, a escolha das direções passou a ser operada por cooptação. Nesse formato, é a direção que legitima as bases e estabelece o controle sobre elas, invertendo a dinâmica democrática. Desse modo, a vontade da organização se forja de cima para baixo, autoritariamente..

Nas condições de dura clandestinidade, impostas aos lutadores contra a ditadura, a unidade de ação era imprescindível. A menor divergência colocava em risco a coesão do grupo clandestino submetido à pressão aterrorizante do aparelho repressivo do Estado. Nessa situação asfixiante, compreende-se que o centralismo fosse exercido de forma burocrática, autoritária, com um mínimo de discussão e um máximo de disciplina. A organização assumia feições militares. E não podia ser diferente. Nas condições da democracia política, entretanto, a ninguém pode ser imposto sequer o silêncio, quanto mais a obrigação de defender aquilo que repudia, seja em nome do que for.

Um partido socialista, num contexto de democracia política, precisa ser uma organização democrática de massas. Tem a tarefa de produzir na sociedade o consenso em torno das suas idéias. Para isso, ele precisa chegar a esse consenso internamente. A sua unidade terá que ser arquitetada como unidade de pensamento e ação, e não apenas de ação. Pois é a unidade de pensamento que pavimenta a unidade de ação. E isso não se resolve com a subordinação da minoria à maioria. É bem mais complicado. Requer o exercício da persuasão.

A unidade de pensamento só pode ser entendida como uma unidade na diversidade, um pacto entre diferentes que preserve a livre expressão do pensamento. Por isso, a edificação de um pensamento coletivo é uma negociação que não descarta a divergência, mas busca harmonizá-la pela tecedura de uma teia consensual inclusiva em torno das questões centrais para o desenvolvimento da luta política. E não devemos esquecer que o pensamento coletivo sempre é uma síntese dialética provisória, inconclusa, um devir, um fluxo que nunca alcança o seu termo, pois está em permanente reprocessamento.

Que não se queira, pois, resolver divergências políticas quer pelo princípio leninista da subordinação da minoria à maioria (o que obriga a dizer), quer pela imposição do silêncio misericordioso de inspiração papal (o que proíbe de dizer). Muito menos quando se trata de questões que mobilizam convicções de foro íntimo (religiosas ou não).

* Sergio Granja é diplomado pela École des Hautes Études en Sciences Sociales e mestrando em Literatura Brasileira na UERJ; é autor do romance Louco d'Aldeia em dois tempos (Record, 1996). Também é militante do Núcleo Zona Sul do PSOL do Rio de Janeiro (RJ).

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