A esquerda parece não ver nenhuma relação entre as concepções teórico-políticas
de Lenin e toda evolução posterior das experiências socialistas na Rússia, no
Leste Europeu e no mundo. Não fosse o maldito Stalin, certamente estaríamos no
paraíso socialista.
Ora, ninguém pode subestimar o papel nefasto que
Stalin cumpriu na história, mas atribuir a ele esta importância é, no mínimo, um
simplismo que exige uma grande dose de boa vontade para convencer a nós mesmos.
Stalin jamais poderia ter sido o que foi se a maioria dos comunistas na Rússia e
no mundo não o tivessem apoiado entusiasticamente. E todos eram comunistas
teoricamente referenciados no marxismo-leninismo (ou não?).
Mesmo aqueles
que se opuseram ao stalinismo, como foi o caso de Leon Trotsky, na verdade
defendiam o mesmo modelo totalitario e burocratico de socialismo.
"A discussão em torno do papel do Estado, sua relação com os sindicatos,
a autonomia da classe operária nada disso fora palavrório oco. Lênin, com a NEP,
propunha agora um outro caminho, com maior liberdade para a cidade e o campo,
recuperando o papel do mercado, compreendendo que o capitalismo ainda tinha
fôlego para se desenvolver numa sociedade que ele acreditava estar caminhando
para o socialismo. Trotsky tinha outra visão, que mais tarde, ironicamente, será
integralmente adotada por seu mais visceral inimigo, Stalin. Está certo
Deutscher quando afirma não haver praticamente nenhum aspecto do programa
sugerido por Trotsky em 1920-21 que Stalin não tenha usado durante a
industrialização acelerada da década de 1930. Adotou o recrutamento forçado,
subordinou os sindicatos, estimulou a disputa de produção entre os
trabalhadores, na linha do taylorismo soviético defendido por Trotsky."
(Emiliano José; em "Trotsky: do pomar para a
Revolução")
A crise do socialismo é bem mais profunda do que a
maioria da esquerda admite. Assumir a gravidade desta crise é o primeiro passo
necessário para superarmos o impasse.
O que fracassou no Leste Europeu,
e nos outros países do chamado 'socialismo real', foi um determinado tipo de
socialismo, cujos pressupostos teórico-filosóficos estavam contidos no
marxismo-leninismo.
Os graves erros do modelo socialista
desenvolvido por Lenin
É verdade que o stalinismo teve desvios
em relação às concepções leninistas. Mas o que deve ser discutido é se as
concepções de Lenin eram corretas, se não permitiram o desenvolvimento desses
desvios.
Dentro do marxismo clássico - e também em Lenin -, a classe
operária é portadora do universal, porque quando se emancipa, está emancipando o
conjunto da sociedade. O problema é que Lenin não acredita na capacidade da
classe operária para exercer o poder na fase inicial de construção do
socialismo. Os trabalhadores, segundo Lenin, "não se desembaraçarão facilmente
de seus preconceitos pequeno-burgueses", precisando ser "reeducados sobre a base
da ditadura do proletariado". Este poder deveria ser exercido pela vanguarda da
classe - já livre da ideologia burguesa -, isto é, pelo partido desta classe.
Assim, a fórmula leninista da ditadura do proletariado acaba resultando na
ditadura do partido do proletariado, pois os interesses históricos de partido e
classe são os mesmos, com a diferença de que o conjunto da classe ainda não
descobriu sua "missão histórica", a ser revelada pelo partido.
Neste
ponto, é importante frisar, não houve um desvio do stalinismo em relação ao
leninismo, mas sim sua continuidade, com todos os agravantes da personalidade
autoritária de Stalin.
O stalinismo não foi resultado de
nenhuma "contra-revolução burocratica", e sim resultado desse grave erro
existente no modelo marxista-leninista.
O regime bolchevique foi
pré-totalitario, pois plantou as sementes que deram origem ao stalinismo, até
porque se antes da revolução Lenin pregava
"todo poder aos sovietes", após a
revolução estabeleceu na verdade o
"todo poder ao partido comunista".
O caráter anti-democrático do bolchevismo pode ser constatado nas palavras de
Leon Trotsky, um dos principais revolucionários bolcheviques, que desde 1920 já
defendia a militarização do trabalho e a estatização dos
sindicatos.
“A verdade é que, em regime socialista, não haverá
aparelho de coerção, não haverá Estado. O Estado se dissolverá na comuna de
produção e de consumo. Entretanto, o caminho do socialismo passa pela tensão
mais alta da estatização. E é exatamente este período que atravessamos. Assim
como um lampião, antes de se apagar, brilha com uma flama mais viva, o Estado,
antes de desaparecer, reveste a forma da ditadura do proletariado, a forma mais
impiedosa de governo que existe, um governo que envolve, de maneira autoritária,
a vida de todos os cidadãos. É essa bagatela, esse pequeno grau na história que
[...] o menchevismo não viu, e foi isto o que lhe fez tropeçar”. (Leon
Trotsky; em "Terrorismo e Comunismo")
Ao afirmar que a ditadura do
proletariado é a forma mais impiedosa de governo que existe, Trotsky está
legitimando os crimes promovidos durante o chamado "terror vermelho", e pior, dando sinal verde
para o terror ainda mais criminoso e aberrante da era stalinista, até porque
para voltar à imagem, e se o lampião em vez de se apagar não só continuasse
aceso mas pusesse fogo no mundo? Foi o que aconteceu com o stalinismo. Não é
portanto por coincidencia que enquanto comandante do Exército Vermelho, Trotsky
ordenou em fevereiro de 1921, a repressão brutal contra o levante socialista do soviet de Kronstadt.
Ao contrário
de Lenin, Trotsky e dos bolcheviques, a marxista Rosa Luxemburgo deixou claro em "A
Revolução Russa", que ditadura do proletariado não é a ausência de democracia,
muito menos obra de uma minoria agindo em nome da classe trabalhadora.
"A democracia socialista começa com a destruição da dominação de
classe e a construção do socialismo. (...) Ela nada mais é que a ditadura do
proletariado. Perfeitamente: ditadura! Mas esta ditadura consiste na maneira de
aplicar a democracia, não na sua supressão. (...) esta ditadura precisa ser obra
da classe e não de uma pequena minoria que dirige em nome da classe".
(Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")
Os comunistas
insistem em se fazer de cegos para não enxergar os
crimes promovidos durante a fase anterior ao stalinismo, crimes que também
precisam ser condenados. Em
"Somos todos pós-modernos?", Frei Betto pergunta
"quem diria que a revolução russa terminaria em gulags?" Oras, quem conhece a
história da Revolução Russa, sabe muito bem que os gulags surgiram por
iniciativa de Lenin, ao autorizar a criação dos primeiros campos de concentação
na Europa já em 1918, para aqueles que não compartilhavam suas
idéias.
"Os sovietes funcionaram com alguma liberdade só até
junho de 1918. Os jornais socialistas de oposição não duram muito mais do que
isso. Os campos de trabalho forçado existem desde 1918-1919. Em 1918, e depois
em 1920-1921, há greves importantes, reprimidas violentamente pelo regime."
(Ruy Fausto; "Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo
Igualitarista)
O historiador russo Dmitri Volkogonov afirma que
a idéia do sistema de campos de concentração (os Gulags), e os terríves expurgos
dos anos 30, são normalmente associados ao nome de Stalin, mas o verdadeiro
"pai" dos campos de concentração bolcheviques, as execuções, e o terror em
massa, era Lenin. Nos antecedentes do terror implantado por Lenin, se torna
fácil entender os métodos inquisitoriais de Stalin, o qual era capaz de executar
alguém apenas baseado em suposições. Citando o filósofo marxista Ruy Fausto:
"Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e
stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o
bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (RUY FAUSTO; "EM TORNO DA
PRÉ-HISTÓRIA INTELECTUAL DO TOTALITARISMO IGUALITARISTA")
Leia o texto abaixo e reflita
A INFÂNCIA DE UM
CHEFE
Ruy Fausto*
Simon Sebag Montefiore que, com "A
Corte do Czar Vermelho" [Cia. das Letras], espécie de análise
histórico-etnológica de Stálin, havia provocado uma pequena revolução na
"stalinologia" e, em certa medida, na sovietologia em geral, lança agora este
"Jovem Stálin", que se ocupa da vida do "pai dos povos" até a sua participação
no primeiro governo bolchevique, em novembro de 1917.
Como o livro
anterior, este é o resultado de um longo trabalho: quase dez anos de
investigação em 23 cidades e nove países, incluindo pesquisas em arquivos
recém-abertos em Moscou e nas cidades georgianas de Tbilisi e Batumi, além da
utilização de memórias, em boa parte inéditas, de contemporâneos mais ou menos
obscuros.
A primeira reação diante de tal tipo de trabalho é de
ceticismo. Esse mergulho na vida do tirano poderia levar a resultados históricos
de alguma relevância? Na realidade, o livro é importante. Sem dúvida, pode-se
dizer que ele não inova propriamente, "apenas" radicaliza o que já fora revelado
pelo livro anterior e por textos de outros autores. Só que essa radicalização
vai longe. Há nele três elementos, de interesse crescente.
Em primeiro
lugar, para além do que já se sabia por meio de "A Corte do Czar Vermelho", o
leitor descobre um Stálin com qualidades intelectuais-artísticas bem superiores
às que poderia sugerir o retrato que dele faz Trótski.
O jovem Stálin
não só canta bem e é um grande leitor, principalmente de literatura e história,
mas é um poeta georgiano de qualidade apreciável (os poemas em tradução, que o
volume traz, parecem confirmar esse julgamento).
O Stálin poeta foi
incluído em antologias da poesia georgiana do início do século e, segundo
Montefiore, ele é um "clássico georgiano menor". O futuro "pai dos povos" "foi
admirado na Geórgia como poeta antes de ser conhecido como revolucionário".
Montefiore diz também, "en passant", que Stálin lia Platão no original
grego (língua que deve ter aprendido no seminário). Ele não foi um indivíduo
inculto; mesmo o epíteto de semiculto talvez seja insuficiente. Stálin foi um
intelectual de estilo provinciano (não conseguiu dominar as línguas modernas
fora o russo, tinha gostos muito convencionais em arte etc.). Porém, se Stálin
foi mais intelectual do que se supunha, ele também foi mais bandido… Suas
atividades de "expropriador" são conhecidas, principalmente o famoso ataque às
"carruagens pagadoras" do Banco do Estado em Tiflis, em junho de 1907, fato
noticiado com destaque pela imprensa mundial da época.
O assalto de
Tiflis, planejado por Stálin, mas do qual ele provavelmente não participou de
forma direta, foi executada por um grupo de homens e mulheres dirigido por Kamo,
um bandido sanguinário e psicopata, totalmente fiel a Stálin. Segundo os
arquivos da polícia secreta czarista, nele morreram mais ou menos 40 pessoas.
Stálin se comportava como um verdadeiro chefe de bando, mesmo se só guardasse
para si a glória e o poder (que sempre foram seus maiores objetivos): o dinheiro
ia para os cofres da organização bolchevista.
Stálin planejou e dirigiu
outras ações violentas, incluindo talvez um ato de pirataria contra um navio no
mar Negro, arrancou dinheiro de comerciantes e industriais, sob ameaça de morte
ou de incêndio de propriedades, e mandou matar espiões (segundo alguns, liqüidou
também gente que simplesmente não lhe inspirava confiança). Assim, nas palavras
do autor, "Stálin era uma rara combinação: ao mesmo tempo intelectual e
assassino".
É por causa dessa dupla condição - esse é o ponto importante
- que ele caiu nas boas graças de Lênin. Também aqui os fatos, em grande parte
pelo menos, já eram conhecidos, mas Montefiore mostra bem o quanto Lênin
apreciava Stálin, e como iria promover sua ascensão na hierarquia, depois da
cisão formal do partido bolchevique (1912).
"Esse é exatamente o tipo de
pessoa de que necessitamos", diz Lênin sobre Stálin, nos anos 1910, respondendo
às objeções de um menchevique. Numa carta a Gorki - esta bem conhecida -, Lênin
se refere a Stálin como o seu "maravilhoso georgiano". Às vésperas do quinto
Congresso da Social-Democracia russa, em Londres, em abril-maio de 1907, Lênin
encontra Stálin em Berlim.
Lá, eles conversam sobre a iminente operação
de Tiflis (!) e sobre os meios para remeter o dinheiro. No congresso, onde, por
proposta dos mencheviques, as expropriações são proibidas pelo partido, sob pena
de expulsão, Lênin afirma não conhecer Stálin.
Em 1912, junto com
Zinoviev, Lênin propõe que Stálin seja cooptado para o Comitê Central
bolchevique. E, em 1922, assegura, com Kamenev, a nomeação de Stálin como
secretário-geral do Comitê Central.
Se as coisas se passaram assim, é
preciso concluir - não, como pretende o autor, que o stalinismo é simples
continuação do leninismo: as diferenças entre os dois não desaparecem apesar de
tudo isso - que o leninismo "preparou a cama" para o stalinismo.
Meios e
fins
Lênin sempre deixou claro que não tinha maiores problemas com o uso
dos meios, desde que os objetivos fossem revolucionários. E, assim, não hesitou
em apelar para o banditismo como força auxiliar. E, até mais do que isso, a
serviço do grupo e, depois, do partido bolchevique.
Quando se tenta
idealizar "o último combate de Lênin" - a ruptura com Stálin, em 1923, e a
tentativa de afastá-lo da Secretaria Geral -, é impossível não comentar: pois
fora ele mesmo, Lênin, que introduzira o lobo (não propriamente entre
"cordeiros", mas…).
A refletir. Quando jovem, Fidel Castro foi uma
espécie de gângster, e a última biografia de Mao Tse-tung revela um personagem
que tem muito a ver com o banditismo. Que o stalinismo tenha certa afinidade com
o gangsterismo não é muito surpreendente nem representa, a rigor, uma informação
nova, nos dias de hoje.
Mas o que, sim, deveria ser matéria de reflexão
é o uso que o leninismo fez das práticas do gangsterismo. Essa atitude não foi
acidental. Ela estava enraizada nessa mistura de neojacobinismo, neonarodnikismo
e fria racionalidade capitalista, que é o leninismo. Os resultados, conhecemos.
Infelizmente, como os stalinistas outrora, os nossos neoleninistas
preferem não enxergar o que é desagradável. A confusão teórica é o preço dessa
política de avestruz.
*RUY FAUSTO é filósofo, professor emérito da
USP e lecionou na Universidade de Paris 8. É autor de "Marx - Lógica e Política"
(ed. 34).