"Ser marxista é, antes de mais nada, ser anticapitalista, ou seja, lutar pela construção de uma sociedade sem classes, que suprima a exploração do homem pelo homem e a propriedade privada dos grandes meios de produção, criando condições para que as relações entre os homens sejam fundadas na solidariedade e não no egoísmo do mercado. Claro, ser marxista não é repetir acriticamente tudo o que Marx disse. Marx morreu há cerca de 120 anos e muita coisa ocorreu desde então. Mas, sem o método que ele nos legou, é impossível compreender o que ocorre no mundo. Ele nos disse que o capital estava criando um mercado mundial, fonte de crises e iniqüidades, e nunca isso foi tão verdadeiro quanto no capitalismo globalizado de hoje. Falou também em fetichismo da mercadoria, na conversão do mercado num ente fantasmagórico que oculta as relações humanas, e nunca isso se manifestou tão intensamente quanto em nossos dias, quando lemos na imprensa barbaridades do tipo 'o mercado ficou nervoso'." (Carlos Nelson Coutinho)

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Direitos Humanos e socialismo: Marx e cristianismo. (Parte final)

Direitos Humanos e socialismo: Marx e cristianismo. (Parte final)

Jung Mo Sung é diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.

Comecei esta pequena série de artigos sobre "Direitos Humanos e socialismo” –que termino com este–, citando uma afirmação de Franz Hinkelammert: "Se hoje dizemos que outro mundo é possível, se queremos uma sociedade alternativa, ou o socialismo no século XXI, então, creio que é fundamental partir sempre dos direitos humanos. Os direitos humanos não são simples moralismo. O reconhecimento dos direitos humanos é mais bem a condição de possibilidade de uma sociedade alternativa e uma sociedade sustentável, a base de toda sociedade que podemos considerar que vale a pena sustentar”.

No passado recente, as lutas por superar o capitalismo foram sempre motivados por implantação de um sistema econômico-social-político nomeado de socialismo. Esse sistema servia de critério para discernir tipos de lutas aceitáveis e os não; enquanto que a noção de dignidade humana permanecia meio na sombra. As reflexões desenvolvidas aqui foram no sentido de propor a defesa da dignidade humana de todas as pessoas anterior e superior a qualquer sistema social ou legal. Isso não quer dizer que não se deva pensar em sistemas sociais concretos, pois sem elas a vida humana não é possível, portanto a defesa da dignidade e direitos humanos. Mas nenhum sistema social pode ser absolutizado.

Nessa luta, o sonho de "um novo mundo e novo ser humano”, com forte ênfase nesse "novo”, nos leva muitas vezes a imaginar a construção de um mundo sem contradições inerentes a todos os sistemas sociais e um novo ser humano sem conflitos e contradições internas e nas relações sociais. Quando se confunde essas imaginações utópicas com projetos sociais possíveis, cai-se na ilusão (idealista) de que podemos construir o que transcende a possibilidade humana; ilusão essa que nos conduz a caminhos equivocados e até perversos.

Quando se luta por sociedades impossíveis (como, por ex., um mundo globalizado sem relações mercantis, porque não queremos nenhum tipo de concorrência), não se constrói o que é possível. Quando se sonha com ser humano "perfeito”, não se ama pessoas reais, imperfeitas como são, com seus egoísmos e interesses, mas também com desejo de solidariedade.

Pensar e lutar por outro mundo a partir deste que temos é fundamental. Assim como é fundamental que aceitemos a condição humana como ela é. Marx, na sua maturidade, ao falar do Reino da Liberdade, escreveu: "Assim como o selvagem tem de lutar com a Natureza para satisfazer suas necessidades, para manter e reproduzir sua vida, assim também o civilizado tem de fazê-lo, e tem de fazê-lo em todas as formas de sociedade e sob todos os modos de produção possíveis.” Não há e não haverá modo de produção possível em que seres humanos não tenham a necessidadede produzir, distribuir e consumir bens materiais e simbólicos para satisfazer suas necessidades para viver. Não haverá um "reino”, por mais livre que seja, em que a liberdade não dependa também da forma como se soluciona os desafios econômicos da produção de bens necessários.

Além disso, por mais que consigamos criar sociedades mais justas e livres, o ser humano continuará sendo um ser com desejos e necessidades que entram em conflito com desejos e necessidades de outras pessoas. Isso é assim porque não temos conhecimento perfeito da realidade, nem a nossa razão consciente domina completamente nossa vida (Freud já mostrou a força dos desejos inconscientes), e, talvez a característica mais esquecida nas nossas discussões, o nosso desejo está sempre marcado pela imitação do desejo do outro. Desejamos ter o que outro tem ou é. (O décimo mandamento de Deus é sobre isso). Desejo vem ligado à rivalidade. Daí a importância que o cristianismo e outras tradições espirituais dão à reconciliação.

Somos seres que desejam mundos plenamente harmoniosos, soluções perfeitas, infinitas. Quem não reconhece a impossibilidade de construirmos o infinito com passos finitos, humanos, acaba por deixar de amar seres humanos como eles são, de defender os direitos humanos de seres humanos com seus defeitos incorrigíveis; de lutar por um mundo que continua "defeituoso”, mas melhor.

Nessa nossa luta, precisamos lembrar o que dizia José Comblin: "A novidade do cristianismo não é o desejo do infinito, é o amor das coisas finitas, o amor das coisas que passam. (...) a fuga para o eterno e o absoluto é um truque da consciência para esconder uma fraqueza. (...) Pois, para um homem é um desafio ter que enfrentar permanentemente a fragilidade de sua condição e a incerteza do que é e pode”.

Direitos Humanos e socialismo: que mundo? que ser humano? (V Parte)

Direitos Humanos e socialismo: que mundo? que ser humano? (V Parte)

Jung Mo Sung é diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
 
 
No artigo anterior, eu defendi a ideia de que devemos elaborar projetos de uma sociedade alternativa a partir da realidade que temos hoje, em uma tensão entre o que imaginamos como utopia e a realidade atual. E de que não devemos cair na "tentação” de desenharmos a nova sociedade somente a partir de nossos desejos ou crenças, como se tivéssemos à nossa frente um papel em branco. Com isso, concluí dizendo que devemos enfrentar uma contradição fundamental na nossa luta: o fato de que não há como organizarmos o sistema econômico em escala mundial sem os mecanismos de mercado e a constatação de que o mercado tem a tendência interna de acumulação de riqueza em mãos de poucos, de excluir os pobres e de colocar em ameaça o meio ambiente.

Neste artigo, quero propor uma reflexão sobre um outro tipo de contradição que devemos levar a sério: a contradição humana.

Muitas das propostas de uma nova sociedade– do tipo uma baseada na solidariedade, sem relações de concorrência, na igualdade, na harmonia entre seres humanos e entre humanos e a natureza –pressupõe uma noção de ser humano muito otimista. Parece que após a "libertação” ou "revolução”, na nova sociedade as pessoas deixariam de ser contraditórias: não teriam dentro de si nenhum sentimento de concorrência ou inveja, estaria isento de egoísmo, rivalidade e o desejo de possuir o que é dos outros, de domínio sobre outros e sobre a objetos do meio ambiente.

A descrição do "novo mundo” é tão atraente e fabuloso que nos encantamos com ela e passamos acreditar que é possível, pois é desejável. Contudo, nem tudo o que é desejável é possível. O ser humano necessário para que uma sociedade funcione assim parece-me muito irreal, pouco humano, demasiadamente angelical. O pressuposto antropológico subjacente ao desenho dessa nova sociedade parece cometer o mesmo equívoco de muitas antropologias do mundo moderno: o de que o ser humano é, por sua essência, bom, puro, plenamente solidário e harmonioso. E é a sociedade que o corrompe. No nosso caso, a sociedade capitalista que o corromperia e o fim do capitalismo traria de volta esse ser humano "puro”.

Oposto a essa visão extremamente otimista, o neoliberalismo pressupõe uma noção totalmente negativa do ser humano: um ser totalmente egoísta, incapaz de solidariedade genuína, movido somente por interesses econômicos. A partir dessa noção, o neoliberalismo propõe que as metas sociais e o bem comum sejam tiradas da discussão política e deixada somente para os mecanismos inconscientes do mercado, o famoso "mão invisível” do mercado. Não é verdade que os neoliberais não se preocupam com solidariedade ou bem comum. Eles se preocupam sim, mas só não acreditam que o ser humano possa realizar isso por causa do seu egoísmo fundamental. Por isso, defendem que todas as questões ligadas ao bem comum sejam deixadas na mão do mercado, com sua eficiência que nasce da concorrência. Para os neoliberais, o ser humano é egoísta, mas o mercado transforma esse egoísmo em bem comum. O mercado salva!

Devemos superar esses dois extremos, dois equívocos antropológicos muito presentes no nossa tempo. O ser humano não é plenamente solidário, nem completamente egoísta. Somos seres contraditórios, com egoísmo enraizado em nós, mas com potencial de solidariedade; movidos por inveja, mas também por gratuidade; desejosos do bem comum, mas também movido por interesses próprios; seres que se realizam através de ações e trabalhos, mas que também é regido pela lei do menor esforço. Reconhecer e respeitar essa condição humana é também uma forma de defesa dos direitos humanos na luta por uma nova sociedade.

Lutar por ou exigir uma nova sociedade que pressupõe que todos os seres humanos sejam heróis ou anjos é negar a condição humana. Por isso, fadado ao fracasso, porque desumano, irreal. A construção de nova sociedade mais humana e justa só será efetiva se levarmos em consideração a realidade humana como ela é, naquilo que tem de mal e naquilo que tem de bom. É com o ser humano "real”, não o idealizado, e a partir das atuais condições da economia de mercado global é que poderemos construir uma outra sociedade mais justa e humana.

Direitos Humanos e socialismo: sonhos e o mercado (IV parte)

Direitos Humanos e socialismo: sonhos e o mercado (IV parte)

Jung Mo Sung é diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
 
 
No artigo anterior, defendi a tese de que o projeto de uma sociedade pós-capitalista não deve ser pensado em termos de estatização de toda economia –como foi o modelo soviético–, mas deve ser um "sistema social que coloca no seu centro os direitos sociais de todos os indivíduos. Por isso, um sistema que se reconhece relativo e subordinando à realização dos direitos humanos, um sistema que está em permanente processo de revisão, crítica e reformulação”. Assim, o "socialismo” não seria mais identificado a um modelo institucional de organização do Estado e da economia –como foi por ex, o da estatização completa no modelo soviético–, mas sim com um projeto de sociedade fundando em uma tensão entre o critério último da busca da realização de direitos sociais e humanos de todos os indivíduos e o "desenho” concreto de sociedade sem uma definição a priori.

É claro que essa ideia geral, por mais importante que seja, não é suficiente para guiar lutas sociais e políticas concretas. Pois, sem a visão de um "modelo de sociedade”, não há como pensar a direção e os passos da caminhada. E é essa mesma visão que possibilita dar maior concretude a horizonte de esperança que alimenta as comunidades e grupos em luta.

De um modo bem simplificado, podemos dizer que há duas maneiras fundamentais de se pensar ou criar esse projeto de sociedade alternativa. A primeira é a de "desenhar” esse projeto a partir de alguns valores, crenças e ideias sobre o que seria o ideal. Por ex, há grupos que pregam que estamos indo, ou que devemos ir, em direção a uma grande harmonia cósmica entre seres humanos e a natureza/cosmos; outros que defendem uma sociedade sem exploração econômica, por isso, sem propriedade privada e mercado.

A partir desse projeto, olham à realidade para criticar –tanto a situação quanto aos grupos que estão lutando– e propor caminhos de superação da situação. Mas, como o "desenho” do projeto é muito genérico, abstrato, fica muito difícil saber qual o caminho concreto construir. E quando perguntados sobre a viabilidade desses projetos históricos grandiosos, as respostas costumam ser evasivas ou se introduz noções "estranhas” à política como: "a histórica caminha para...” ou "a evolução está nos conduzindo o cosmos e a humanidade à plenitude...”. Noções essas (o espírito que move a história, evolução cósmica, etc.) que parecem substituir ou são usadas como sinônimos da ideia teológica de que Deus conduz a história ao destino pré-estabelecido por ele.

Esse tipo de argumentação seduz porque, com a noção de que há uma força sobre-humana nos conduzindo à plenitude e superação de todas as injustiças, cria esperança no futuro e compensa em parte a sensação de impotência diante da dominação capitalista global. O problema é que, se essa força conduz necessariamente a história e o cosmos a um destino, as nossas ações são desnecessárias. Pior, as injustiças do passado e do presente também foram partes dessa condução, portanto, não eram de fato injustiças.

Além disso, esses discursos grandiosos não nos dão pistas de ação, a não ser pregar essa nova consciência, e nos levam muitas vezes a criticar e opor a ações concretas possíveis que estão sendo feitas porque essas não levariam a essa plenitude.

Outro modo de pensar a sociedade alternativa é a partir das contradições da realidade em que vivemos. Vivemos em uma economia capitalista globalizada, sob a hegemonia do capital financeiro e dos grandes conglomerados, que é apresentado pelos ideólogos do sistema como não havendo alternativa a ela e que todas alternativas propostas não passariam de sonhos irrealizáveis. Além disso, bilhões de pessoas mais pobres desejam entrar no sistema, realizar o sonho de consumo, e não lutar por outra sociedade.

Diante dessa realidade, não basta "desenharmos” uma nova sociedade como se tivéssemos um papel branco à nossa frente. Precisamos de ima imaginação utópica de um mundo mais humano e justo que nos possibilita ver as contradições e injustiças desse mundo, mas o novo desenho precisa ser feito a partir do mundo atual. Deduzir diretamente dessa imaginação um projeto de sociedade pode nos levar ao idealismo romântico e/ou a equívocos estratégicos terríveis.

A economia está globalizada, formando uma divisão social de trabalho em escala mundial. E não será possível modificar isso num futuro próximo, a não ser que passemos por uma catástrofe em escala mundial. O tamanho da escala e de complexidade da economia global exige, para seu funcionamento, relações de troca, isto é, relações mercantis e mercado em escala global. O que significa dizer que não é possível defender os direitos humanos, começando pelo direito de viver, de todas as pessoas propondo uma nova economia baseada somente em pequenas empresas ou uma sem mercado.

Ao mesmo tempo em que reconhecemos a necessidade hoje do mercado global, também sabemos que esse mercado tende à concentração de riqueza, exclusão dos mais pobres e deterioração do meio ambiente. O caminho da solução não consiste em "fugir” para imaginação de um mundo sem essa contradição, mas em enfrentá-la.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Direitos Humanos e socialismo: contradição necessária e insuperável (III Parte)

Direitos Humanos e socialismo: contradição necessária e insuperável (III Parte)

Jung Mo Sung: Diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
 
 
No final do artigo anterior, fiz duas afirmações interligadas que quero retomar aqui: a) a nossa luta por uma nova sociedade não deve ter como objetivo último um novo tipo de sistema econômico-político – por ex, sistema socialista de planejamento centralizado pelo Estado –, pois a dignidade e direitos humanos são anteriores a qualquer sistema social; b) não há possibilidade de realização dos direitos humanos sem sistemas e instituições sociais.

Com a derrocada do bloco socialista na década de 1990 e às críticas à razão moderna, hoje são poucos, entre os que lutam por um "outro mundo possível”, aqueles que defendem o sistema socialista dominante no século XX, que quase absolutizava o Estado dirigido pelo Partido Comunista. Como reação a esse modelo, muitos tem ido à direção oposta e proposto uma nova sociedade que parece não ter instituições. Em nome da defesa dos direitos humanos (e alguns agregando os direitos da natureza), que são anteriores a qualquer sistema social, imaginam uma sociedade (quase) sem nenhum mecanismo institucional que possam reduzir ou reprimir esses direitos. Por ex, uma sociedade sem mercado –que sempre exclui quem não é consumidor–, ou então um Estado sem instituições ambíguas –como democracia que implica em conflitos e disputas pelo poder, portanto em alianças e negociações– ou mecanismos de repressão legal.

Seria ideal que pudéssemos construir uma sociedade em que vícios humanos fossem extintos e prevalecesse harmonia entre indivíduos, grupos sociais e nações. O problema é que a realização concreta dos direitos humanos, como comer e morar dignamente ou liberdade de expressar suas ideias, pressupõe a produção de bens materiais e simbólicos em quantidade suficiente para toda a população. E essa produção exige sistemas de trabalhos (que inclui meios de produção, matéria prima, energia, tecnologia, mão de obra...), que pressupõe instituições e regras, que são sempre imposições sobre a vontade individual.

A dignidade fundamental de todas as pessoas, independente do seu lugar em qualquer e todo tipo de sistema, só pode ser garantida e seus direitos realizados através de mecanismos sociais e institucionais. Ao mesmo tempo, a lógica de toda instituição e de sistemas sociais é a de reduzir pessoas a um elemento de seu próprio funcionamento. Isto é, há uma contradição insuperável entre a afirmação da dignidade humana como anterior a todo sistema e a lógica de funcionamento dos sistemas. Ao mesmo tempo, não podemos realizar essa dignidade e direitos que dele decorrem sem esses mecanismos sociais e institucionais. Esse é o caráter dialético insuperável da vida humana.

Há pessoas que, de forma idealista (no sentido filosófico), anunciam a possibilidade de fim dessa contradição. Mas, quando pedidos para descrever como seria esse novo mundo e novos seres humanos, não podem nada mais que responder apenas com linguagens simbólicas (místicas ou poéticas) que não permitem deduzir nenhum caminho estratégico concreto.

Imaginações simbólicas são fundamentais para vislumbrar novidades na história, mas, se ficarmos somente nesse nível, não logramos pensar e praticas ações políticas e sociais concretas. Só ficamos em "apelos morais e espirituais”.

Há outros que priorizam o polo da instituição e fazem do Estado, Partido ou líder que encarnaria o processo revolucionário, o critério último. Com isso, não admitem nenhuma crítica a eles, mesmo em nome da vida dos mais pobres. Toda e qualquer crítica é vista como um tipo de traição.

Penso que o caminho mais viável (ou único) para retomar o espírito que moveu a luta pelo socialismo nos século XIX e XX é o de assumir a defesa da dignidade e dos direitos humanos de todas as pessoas como critério último e buscar construir mecanismos, instituições e sistemas sociais que possam garantir a concretização desses direitos. Socialismo entendido, não mais como estatização, mas como sistema social que coloca no seu centro os direitos sociais de todos os indivíduos. Por isso, um sistema que se reconhece relativo e subordinando à realização dos direitos humanos, um sistema que está em permanente processo de revisão, crítica e reformulação.

Direitos Humanos e o socialismo do século XXI (II parte)

Direitos Humanos e o socialismo do século XXI (II parte)

Jung Mo Sung: Diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
 
 
É da própria lógica de funcionamento de sistemas ou instituições sociais tratar o indivíduo humano como uma peça da sua engrenagem e, desta forma, valorizá-lo na medida em que cumpre com as exigências do próprio sistema. Quanto mais totalitário o sistema, mais o ser humano é reduzido à condição de elemento do sistema e nada mais. Em uma sociedade capitalista neoliberal, como afirmei no artigo anterior, "os direitos humanos foram substituídos por ‘direito do consumidor’, porque, no neoliberalismo, quem não é consumidor não é humano, portanto não possui direitos fundamentais”.

É claro que legalmente falando, mesmo um indivíduo totalmente excluído do mercado, um miserável, não deixar de ser considerado humano, mas na vida cotidiana real e nas dinâmicas sociais e econômicas ele não tem seus direitos humanos fundamentais reconhecidos e respeitados. O mercado, na cultura capitalista, passou a ser considerado a fonte da humanidade e, portanto, fonte dos direitos fundamentais.

Essa experiência cotidiana está tão internalizada na nossa cultura que, quando alguém se sente "menos gente”,deprimido ou "impuro”, uma das soluções mais procuradas é ira ao shopping fazer compras. É no contato direto com o que há de mais esplendoroso do mercado, as vitrines dos shoppings com objetos e marcas glamorosos, que o indivíduo se sente recuperando a humanidade perdida. No passado, as pessoas em situação semelhante iam a igrejas ou a lugares sagrados rezar ou realizar algum ritual porque, nessa cultura, a religião, o sistema religioso, era vista como a fonte da humanidade. Por isso, quem era ateu ou de outra religião que não a dominante era visto como um indivíduo carecendo de humanidade plena.

A luta pelos direitos humanos no século XX não foram somente lutas "políticas” contra Estado totalitário ou ditatorial (seja nos países capitalistas ou comunistas), eram e são fundamentalmente a afirmação da dignidade fundamental do ser humano anterior a qualquer instituição ou sistema social (sistema de mercado, Estado, Igreja,...). Portando, os direitos fundamentais de todo ser humano a vida digna e, por isso, a direitos como a moradia, saúde, educação, ao trabalho remunerado, liberdade de expressão, de ir e vir são anteriores e independentes do lugar que a pessoa ocupa no sistema social dominante.

Não é pertença a uma religião ou igreja que dá dignidade ou valor a uma pessoa. Em termos de sistema religioso, a afirmação dos direitos humanos se fundamenta no princípio de que Deus não faz distinção entre pessoas, não importando se é "judeu ou gentio” (sistema político-religioso), homem ou mulher (sistema de parentesco e de gênero), livre ou escravo (sistema de propriedade/economia) e outras distinções e hierarquias sociais que temos. Em uma linguagem teológica cristã, poderíamos dizer que os direitos humanos se fundam na graça de Deus (Deus não impõe nenhuma condição humana, social ou religiosa para amar a todos).

Assim também, não é pertença ao sistema de mercado e a capacidade de consumo que dá fundamento aos direitos humanos na sociedade capitalista; nem ser cidadão legalmente documentado no mundo globalizado que se fecha aos fluxos imigratórios de trabalhadores buscando sobrevivência; ou então ser leal e obediente ao Estado socialista em países governados por partidos comunistas.

A luta por um "outro mundo possível” não pode ser por um tipo de sistema político-econômico alternativo definido como absoluto ou como critério último para as decisões concretas. Pois, se o sistema ou instituição é tomado como critério último, a dignidade do ser humano fica condicionada a pertença e à lógica dessa instituição ou sistema e se nega a anterioridade da dignidade e dos direitos humanos em relação a todo e qualquer sistema social. Não há possibilidade de realização dos direitos humanos sem sistemas e instituições sociais, mas devemos garantir que esses direitos sejam vistos como anteriores a sistemas. Se não, cairemos em totalitarismo, seja do sistema de mercado total, seja do Estado socialista totalitário ou de qualquer outro sistema político-social ainda a inventar.

domingo, 12 de agosto de 2012

O que cobrar ao capitalismo neoliberal em crise

O que cobrar ao capitalismo neoliberal em crise
Leonardo Boff *


A crise do neoliberalismo atingiu o coração dos países centrais que se arrogavam o direito de conduzir não só os processos econômico-financeiros, mas o próprio curso da história humana. A crise é da ideologia política do Estado mínimo e das privatizações dos bens públicos; mas, também, do modo de produção capitalista, extremamente exacerbado pela concentração de poder como nunca se viu antes na história. Estimamos que esta crise possui caráter sistêmico e terminal.

Sempre o gênio do capitalismo encontrava saídas para seu propósito de acumulação ilimitada. Para isso usava todos os meios, inclusive a guerra. Ganhava destruindo e ganhava reconstruindo. A crise de 1929 se resolveu não pela via da economia, mas pela via da Segunda Guerra Mundial. Esse recurso agora parece impraticável, pois as guerras são tão destrutivas que poderiam exterminar a vida humana e grande parte da biosfera. E não estamos seguros de que em sua insanidade, o capitalismo não use até este meio.

Desta vez surgem dois limites intransponíveis, o que justifica dizer que o capitalismo está concluindo seu papel histórico. O primeiro é o mundo cheio, quer dizer, o capitalismo ocupou todos os espaços para sua expansão em nível planetário. O outro, verdadeiramente intransponível, é o limite do planeta Terra. Seus bens e serviços são limitados e muitos não renováveis. Na última geração queimamos mais recursos energéticos do que havíamos feito no conjunto das gerações anteriores, nos atesta o analista cultural italiano Luigi Soja. Que faremos quando estes atingirem um ponto crítico ou simplesmente se esgotarem? A escassez de água potável pode colocar a Humanidade face a uma dizimação de milhões de vidas.

Os controles e as regulações propostas até agora foram simplesmente ignoradas. A Comissão das Nações Unidas sobre a Crise Financeira e Monetária Internacional, cujo coordenador era o prêmio Nobel de economia Joseph Stiglitz (chamada de Comissão Stiglitz) empreendeu grande esforço, para, a partir de janeiro de 2009, apresentar reformas intrassistêmicas de cunho keneysiano. Aí se propunha uma reforma dos organismos financeiros internacionais (FMI, Banco Mundial) e da Organização Mundial do Comércio (OMC). Previa-se a criação de um Conselho de Coordenação Econômica Global no mesmo nível que o Conselho de Segurança, a constituição de um sistema de reservas globais, para contrabalançar a hegemonia do dólar como moeda de referência, a instituição de uma fiscalização internacional, a abolição os paraísos fiscais e do segredo bancário e, por fim, uma reforma das agências de certificação. Nada foi aceito. Apenas a ONU acolheu a constituição permanente de um Grupo de Experts de Prevenção das Crises, que ninguém lhe dá importância porque o que realmente conta são as bolsas e a especulação financeira.

Esta constatação decepcionante nos convence de que a lógica deste sistema hegemônico pode tornar o planeta não mais amigável para nós, nos levar a catástrofes sócio-ecológicas tão graves a ponto de ameaçar nossa civilização e a espécie humana. O certo é que este tipo de capitalismo que na Rio+20 se revestiu de verde com o intuito de colocar preço em todos os bens e serviços naturais e comuns da Humanidade, não tem condições a médio e a longo prazo de assegurar sua hegemonia. Outra forma de habitar o planeta Terra e de utilização de seus bens e serviços deverá surgir.

O grande desafio é como processar a transição rumo a um mundo pós-capitalista liberal. Este terá como centro o Bem Comum da Humanidade e da Terra e será um sistema de sustentação de toda vida que expresse nova relação de pertença e de sinergia com a natureza e com a Terra.

Produzir é preciso, mas respeitando o alcance e os limites de cada ecossistema, não meramente para acumular; mas, para atender, de forma suficiente e decente, as demandas humanas. Importa ainda cuidar de todas as formas de vida e buscar o equilíbrio social, sem deixar de pensar nas futuras gerações que têm direito à uma Terra preservada e habitável.

Não cabe neste espaço aventar alternativas em curso. Ater-nos-emos ao que é possível fazer intrassistemicamente, já que não há como sair dele proximamente.

Assistimos ao fato de que a América Latina e o Brasil, na divisão internacional do trabalho, são condenados a exportar minérios e commodities, bens naturais como alimentos, grãos e carnes. Para fazer frente a este tipo de imposição, deveríamos seguir passos já sugeridos por vários analistas especialmente por um grande amigo do Brasil François Houtart em seus escritos e no seu recente livro com outros colaboradores: "Un paradigma poscapitalista: el Bien Común de la Humanidad” (Panamá 2012).

Em primeiro lugar, dentro do sistema, lutar por normas ecológicas e regulações internacionais que cuidem o mais possível dos bens e serviços naturais importados de nossos países; que tratem de sua utilização de forma socialmente responsável e ecologicamente correta. A soja é para alimentar primeiramente gente e só depois animais.

Em segundo lugar, cuidar de nossa autonomia, recusando a imposição do neocolonialismo por parte dos países centrais que nos mantém, com outrora, periféricos, subalternos, agregados e meros supridores do que lhes falta em bens naturais. Antes, devemos cuidar de incorporar tecnologias que deem valor agregado aos nossos produtos, criemos inovações tecnológicas e orientemos a economia, primeiro, para o mercado interno e em seguida para o externo;

Em terceiro lugar, exigir dos países importadores que poluam o menos possível em seus ambientes e que contribuam financeiramente para o cuidado e regeneração ecológica dos ecossistemas de onde importam os bens naturais especialmente, no caso do Brasil, da Amazônia e do Cerrado.


Trata-se de reformas e não ainda de revoluções. Mas apontam para o novo e ajudam a criar as bases para propor um outro paradigma que não seja o prolongamento do atual, perverso e decadente.


* Leonardo Boff é teólogo e filósofo. Doutor Honoris Causa em política pela Universidade de Turim

quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Direitos Humanos e o socialismo do século XXI

Direitos Humanos e o socialismo do século XXI

Jung Mo Sung: Diretor da Faculdade de Humanidades e Direito da Univ. Metodista de S. Paulo.
 
 
Franz Hinkelammert, no seu mais recente livro "Lo indispensable es inútil: hacia uma espiritualidad de la liberación”(Costa Rica, 2012), diz: "Se hoje dizemos que outro mundo é possível, se queremos uma sociedade alternativa, ou o socialismo no século XXI, então creio que é fundamental partir sempre dos direitos humanos. Os direitos humanos não são simples moralismo. O reconhecimento dos direitos humanos é mais bem a condição de possibilidade de uma sociedade alternativa e uma sociedade sustentável, a base de toda sociedade que podemos considerar que vale a pena sustentar.” (p. 96).
 
Para entendermos o alcance dessa afirmação, precisamos ter em vista uma mudança fundamental na luta pelos direitos humanos no século XXI.

A luta pelos direitos humanos no século XX se deu fundamentalmente em oposição aos Estados autoritários ou totalitários que negavam os direitos individuais dos cidadãos através, por ex., de torturas e censuras. Na medida em que passamos por processos de democratização política, esse autoritarismo do Estado foi sendo controlado ou diminuído em quase todos os países da América Latina. Por isso, pode parecer a muitos que o discurso dos direitos humanos é algo ultrapassado, restrito hoje a grupos e lutas como Comissão Nacional da Verdade, "Tortura nunca mais” ou lutas contra violência contra minorias. (Não vou discutir aqui a tese de que os DH devem ser substituídos por Direito da Natureza)

Essa primeira impressão esconde um mecanismo perverso: hoje a violação dos direitos humanos é cometida não tanto ou somente pelo Estado autoritário, mas também e principalmente através dos mecanismos do mercado "livre”. Com a globalização neoliberal, o principal "agente” violador dos direitos humanos passou do Estado para o sistema de mercado livre. Por ex., as piores violações contra os direitos humanos na guerra do Iraque não foram cometidas pelo exército norte-americano, que estão sob as leis americanas e internacionais, mas por soldados e agentes profissionais contratados através de empresas privadas, que não estão sob as leis internacionais que colocam limites aos procedimentos desumanos na guerra.

A censura é outro exemplo. A principal forma de censura dos meios de comunicação no mundo hoje não é feita através de mecanismos mais "brutos” das ditaduras, mas de modo muito mais silencioso e sutil pela seleção das versões de notícias que estejam de acordo com os interesses dos conglomerados empresariais por detrás dos meios de comunicação. A censura é feita em nome da liberdade de imprensa.

E o direito fundamental à vida –direito que implica em direito ao emprego, saúde...de todos/as— é massivamente violado, não de modo direto, mas indireto. Estado autoritário mata diretamente, enquanto que o sistema neoliberal de mercado global não mata diretamente, o que faz é não permitir que os pobres vivam. Para assegurar, por ex, a sustentabilidade do sistema financeiro europeu e também global, impõe-se aos países como Grécia, Portugal e Espanha medidas duras que não permitem que milhões de trabalhadores pobres possam sobreviver. Há cálculos que indicam que na Rússia, no período de transição para "mercado livre”, morreram quase três milhões de pessoas por causas dos efeitos dessa liberalização.

Para o sistema neoliberal, o que consideramos indispensável, o direito à vida digna de todas as pessoas, é algo inútil e ineficiente porque implica em medidas que limitam a liberdade do mercado. A defesa do direito fundamental à vida de todos/as se dá hoje prioritariamente contra o sistema de mercado neoliberal que impõe sua liberdade de mercado e os direitos dos grandes conglomerados econômicos, "pessoas jurídicas”, sobre as populações de todo o mundo. Em termos da vida cotidiana, os direitos humanos foram substituídos por "direito do consumidor”, porque, no neoliberalismo, quem não é consumidor não é humano, portanto não possui direitos fundamentais.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

As mentiras paraguaias das elites brasileiras


As mentiras paraguaias das elites brasileiras
Por João Pedro Stedile*


Mal havia terminado o golpe de Estado contra o presidente Fernando Lugo e flamantes porta-vozes da burguesia brasileira saíram em coro a defender os golpistas.

Seus argumentos eram os mesmos da corrupta oligarquia paraguaia, repetidos também de forma articulada por outros direitistas em todo continente. O impeachment, apesar de tão rápido, teria sido legal. Não importa se os motivos alegados eram verdadeiros ou justos.

Foram repetidos surrados argumentos paranoicos da Guerra Fria: “O Paraguai foi salvo de uma guerra civil” ou “o Paraguai foi salvo do terrorismo dos sem-terra”.

Se a sociedade paraguaia estivesse dividida e armada, certamente os defensores do presidente Lugo não aceitariam pacificamente o golpe.

Curuguaty, que resultou em sete policiais e 11 sem-terra assassinados, não foi um conflito de terra tradicional. Sem que ninguém dos dois lados estivesse disposto, houve uma matança indiscriminada, claramente planejada para criar uma comoção nacional. Há indícios de que foi uma emboscada armada pela direita paraguaia para culpar o governo.

Foi o conflito o principal argumento utilizado para depor o presidente. Se esse critério fosse utilizado em todos os países latino-americanos, FHC seria deposto pelo massacre de Carajás. Ou o governador Alckmin pelo caso Pinheirinho.

O Paraguai é o país do mundo de maior concentração da terra. De seus 40 milhões de hectares, 31.086.893 ha são de propriedade privada. Os outros 9 milhões são ainda terras públicas no Chaco, região de baixa fertilidade e incidência de água.

Apenas 2% dos proprietários são donos de 85% de todas as terras. Entre os grandes proprietários de terras no Paraguai, os fazendeiros estrangeiros são donos de 7.889.128 hectares, 25% das fazendas.

Não há paralelo no mundo: um país que tenha “cedido” pacificamente para estrangeiros 25% de seu território cultivável. Dessa área total dos estrangeiros, 4,8 milhões de hectares pertencem brasileiros.

Na base da estrutura fundiária, há 350 mil famílias, em sua maioria pequenos camponeses e médios proprietários. Cerca de cem mil famílias são sem-terra.

O governo reconhece que desde a ditadura Stroessner (1954-1989) foram entregues a fazendeiros locais e estrangeiros ao redor de 10 milhões de hectares de terras públicas, de forma ilegal e corrupta. E é sobre essas terras que os movimentos camponeses do Paraguai exigem a revisão.

Segundo o censo paraguaio, em 2002 existiam 120 mil brasileiros no país sem cidadania. Desses, 2.000 grandes fazendeiros controlam áreas superiores a mil ha e se dedicam a produzir soja e algodão para empresas transnacionais como Monsanto, Syngenta, Dupont, Cargill, Bungue…

Há ainda um setor importante de médios proprietários, e um grande número de sem-terra brasileiros vivem como trabalhadores por lá. São esses brasileiros pobres que a imprensa e a sociologia rural apelidaram de “brasiguaios”.

O conflito maior é da sociedade paraguaia e dos camponeses paraguaios: reaver os 4,8 milhões de hectares usurpados pelos fazendeiros brasileiros. Daí a solidariedade de classe que os demais ruralistas brasileiros manifestaram imediatamente contra o governo Lugo e a favor de seus colegas usurpadores.

O mais engraçado é que as elites brasileiras nunca reclamaram de, em função de o Senado paraguaio sempre barrar todas as indicações de nomes durante os quatro anos do governo Lugo, a embaixada no Brasil ter ficado sem mandatário durante todo esse período.


* João Pedro Stedile é economista, integrante da coordenação nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra) e da Via Campesina Brasil


(Artigo publicado originalmente na coluna Tendências/Debates do jornal Folha de S. Paulo de 17/07/2012)

sexta-feira, 13 de julho de 2012

O futuro que não queremos

O futuro que não queremos
Marcos Arruda - 12/07/2012

Duas clivagens dividem hoje a humanidade: entre a classe dos donos do capital e as classes que só possuem sua força de trabalho; e entre o bloco dos que professam a fé na acumulação ilimitada de riqueza material, ignorando que os recursos do planeta são finitos, e o bloco dos que já praticam uma socioeconomia fundada na sobriedade feliz, conscientes de que podemos ser felizes consumindo menos bens materiais e vivendo em solidária harmonia entre humanos e com os outros seres da Terra.

Apesar dos compromissos voluntários assumidos pelas elites nas Cúpulas oficiais (Rio92 e Rio+20), os indicadores de “desenvolvimento sustentável” dos últimos 20 anos são estarrecedores: PIB global, +75%; emissões de carbono,+36%; degelo da banquisa do Ártico, +35%; ritmo anual de degelo das geleiras, +100%; população mundial, +26%; produção de alimentos, +45%; 1/3 deste total (1,3 bilhões de toneladas) é desperdiçado; desnutridos: mais de 1 bilhão, obesos: mais de 1 bilhão; agricultura usa 70% da água consumida; crescente desigualdade de renda como fator de geração de pobreza: renda mundial detida pelos 20% mais ricos passou de 82,7% para 91,5%; a fração dos 20% mais pobres caiu 20 vezes, de 1,4% para 0,07%; crescente desigualdade de expectativa de vida: para os 20% mais ricos, de 77 para 79 anos; para os 20% mais pobres, de 46 para 44 anos de vida (PNUD).

Estes indicadores comprovam o fracasso do “Desenvolvimento Sustentável”. Mas a avaliação dos resultados de 20 anos de tratados internacionais sobre pobreza, clima, gênero, biodiversidade, desmatamento e desertificação, água, emissões de gases-estufa, acidificação dos oceanos, degelo das calotas e geleiras foi retirada da agenda da Rio+20. Por que? “Não devemos olhar para trás. É tempo de construir o futuro.” Para disfarçar esse fracasso as grandes empresas lançaram a Economia Verde, não só para evitar a avaliação dos 20 anos de promessas vazias, mas para pintar de verde a economia ‘de mercado’, apresentada como ‘o novo caminho’ de salvação da vida e do planeta.

Soluções efetivas além da retórica estão ausentes no documento oficial, O Futuro que Queremos. A Declaração da Cúpula dos Povos na Rio+20 é incisiva: “As instituições financeiras multilaterais, as coalizões a serviço do sistema financeiro, como o G8/G20, a captura corporativa da ONU e a maioria dos governos demonstraram irresponsabilidade com o futuro da humanidade e do planeta e promoveram os interesses das corporações na conferência oficial. Em contraste, a vitalidade e a força das mobilizações e dos debates na Cúpula dos Povos fortaleceram a nossa convicção de que só o povo organizado e mobilizado pode libertar o mundo do controle das corporações e do capital financeiro.”

As elites globais presentes na Cúpula oficial identificam o “desenvolvimento sustentável” com “o crescimento econômico sustentado”. No mundo atual, quase 90% do consumo global é atribuído aos 20% mais ricos. Sem reduzir este consumo excessivo e planejar o crescimento econômico em prol dos necessitados não há solução para a crise social e ambiental. Sem compartilhar a riqueza, o saber e o poder a humanidade não sobreviverá. Só uma nova consciência e um novo paradigma de desenvolvimento podem responder a este desafio.

MARCOS ARRUDA é economista, educador e associado do Instituto Transnacional.

terça-feira, 3 de julho de 2012

Fracasso da Rio+20

Fracasso da Rio+20

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais
 
 
Terminou em fracasso a Conferência da ONU para o Desenvolvimento Sustentável. Foram gastos US$ 150 milhões para promovê-la. Dinheiro jogado fora. Teria sido melhor utilizado na preservação de florestas.

O documento final, aprovado por 193 países, é pífio. Como nenhum país, sobretudo os mais ricos, queria se comprometer com medidas a curto prazo, o texto sofreu tantos cortes, para não desagradar a ninguém, que desagradou até mesmo o secretário-geral da ONU, Ban Ki-moon. No dia seguinte, pressionado pelo Brasil, ele voltou atrás. Desdisse o que havia dito e defendeu o documento, no qual não foram levadas em conta as sugestões da sociedade civil.

Nada de concreto foi decidido, todos os compromissos pela sustentabilidade ficaram para depois... Acordou-se que, no ano que vem, serão definidos os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Em 2014, a resolução de onde virão os recursos para financiá-los. E a partir de 2015 devem ser implementados.

O evento se equipara à crônica de uma morte anunciada. Os líderes dos países ricos viraram as costas à Rio+20. Obama não veio. E ainda teve o descaramento de enviar sua Secretária de Estado, Hillary Clinton, apenas no último dia, quando tudo já estava debatido e aprovado.

Em discurso inócuo, ela anunciou que os EUA destinarão US$ 20 milhões de dólares à proteção ambiental de países da África. Uma esmola, sobretudo considerando que os EUA figuram, ao lado da China, como principal culpado pela degradação da natureza.

O que a Rio-92 representou de avanço, a Rio+20 representa de retrocesso. Em 1992 foram aprovadas a Carta da Terra, a Agenda 21 e três importantes convenções: biodiversidade, desertificação e mudanças climáticas. A partir de então, muitos países criaram ministérios do meio ambiente.

O entusiasmo durou dez anos. Em 2002, na Conferência de Johanesburgo, os governos se recusaram a prestar contas do que haviam acordado no Rio. Já tinham constatado que não há compatibilidade entre preservação ambiental e modelo de desenvolvimento – predador e excludente - centrado na acumulação privada do capital. Tivemos então dez anos (2002-2012) de conversa fiada.

A Rio+20 propôs aos governos, via G-77 (grupo dos países menos desenvolvidos), criarem um fundo de US$ 30 bilhões para financiar iniciativas de sustentabilidade em seus países. A proposta não foi aprovada. Ninguém mexeu no bolso. Isso uma semana depois de o G-20, no México, destinar US$ 456 bilhões para tentar sanar a crise na zona do euro.

Não falta dinheiro para salvar bancos. Para salvar a humanidade e a natureza, nem um tostão. Os donos do mundo e do dinheiro vivem na ilusão de que a nave espacial chamada Planeta Terra possui, como os voos internacionais, primeira classe e classe executiva.

O fato é que os governos, com raras exceções, não estão interessados em investir na sustentabilidade. Isso depende de um esforço a médio e longo prazos. E governos buscam resultados propagáveis nas próximas eleições.

Sustentabilidade é como saneamento. Segundo o Ministério das Cidades, 57% da população brasileira não têm esgoto coletado. Como esgoto passa por debaixo do solo, nossos políticos dão as costas, interessados no que traz visibilidade.

Os governos querem desenvolvimento entendido como multiplicação do capital. Nada de proteger a biodiversidade. Fingem não se dar conta de que as mudanças climáticas decorrem da degradação da biodiversidade.

A voracidade do capital venceu na Rio+20. Hoje, 7 bilhões de pessoas sobrevivem consumindo um planeta e meio. Em breve, chegaremos a dois planetas. Como os recursos naturais são limitados, as gerações futuras correm o sério risco de padecerem a carência de bens essenciais, como água e alimentos.

A chuva que caiu sobre o Rio durante o evento era como lágrimas de Gaia que, com certeza, tinha esperança de que a Rio+20 a livrasse do estupro que sofre em mãos de quem procura apenas tirar proveito dela, indiferente aos direitos das gerações futuras.

Valeu estar ali e participar da Cúpula dos Povos, onde povos indígenas se misturavam com ambientalistas, jovens e crianças, para preservar ao menos a esperança de que vale a pena lutar por um outro mundo possível e sustentável.

Questão ambiental e social

Questão ambiental e social

Frei Betto é escritor e assessor de movimentos sociais



A questão ambiental é também uma questão social. A conclusão é da Royal Society, a mais conceituada academia científica do Reino Unido.

Em dois anos de pesquisas ela constatou que não basta falar em preservação ambiental, energias renováveis e desaquecimento global, sem tocar no tendão de Aquiles apontado pelo velho Marx no século 19: a desigualdade social.

Os países ricos e emergentes consomem excessivamente bens naturais, como água e energia. E o fazem através de processos extrativos que não levam em conta danos ambientais e efeitos sobre a população local, como é o caso da construção da usina de Belo Monte, no Brasil, ou o uso de energia nuclear mundo afora.

Aprendemos na escola que o nosso corpo reflete a composição do planeta: 70% de água. Da água do mundo, apenas 2,5% são potáveis. Dessa parcela, 69% estão congelados nos polos da Terra, e 30% que se acham sob o solo (aquíferos) são ainda inacessíveis à atual tecnologia. O resto –140 mil quilômetros cúbicos– encontra-se em lagos, rios etc.

Um estadunidense consome 50 vezes mais água que um indiano. E 500 vezes mais energia. Assim como já se iniciou a guerra fria por alimentos, com o uso de poderosos mísseis como os transgênicos, em breve teremos a guerra pela água. Prevê-se que, em 2025, 1,8 bilhão de pessoas padecerão de escassez de água.

A carência de água deve-se, sobretudo, às mudanças climáticas. Devido ao consumismo, países desenvolvidos e emergentes –cerca de 20 ao todo- emitem 50 vezes mais gases estufa que países pobres. O uso excessivo de agrotóxicos provoca a erosão do solo e o desmatamento prolonga os períodos de estiagem, estimulando movimentos migratórios e acentuando a pobreza.

O planeta ganha, a cada ano, 80 milhões de pessoas, apesar da queda na taxa de fertilidade. Para o neoliberalismo, 80 milhões de consumistas (não confundir com consumidores) em potencial.
Entre 1960 e 2007 a fabricação de novos artefatos tecnológicos –cada vez mais descartáveis– quadruplicou a produção de cobre e chumbo, e aumentou em 77 vezes a exploração de minerais associados à alta tecnologia, como tântalo e nióbio.

A Rio+20, tanto na reunião dos chefes de Estado quanto na Cúpula dos Povos, deveria ter debatido como o consumismo desenfreado e a desigualdade de renda entre os povos afetam o equilíbrio ambiental. Considerar poluição e pobreza como fatores divorciados é adotar uma postura míope, equivocada, frente à degradação da Terra e a ameaça de escassez de seus recursos naturais.

sábado, 30 de junho de 2012

Entrevista com Jacob Gorender

Em entrevista publicada no jornal O Estado de São Paulo, edição de 19/02/2006, o reporter pergunta ao historiador marxista Jacob Gorender: Hoje, como o senhor define Stalin?

Gorender responde: "Um criminoso. E o que ele escreveu pode-se colocar no lixo."

Infelizmente essa não é a posição do PCdoB, que até hoje insiste em defender Stalin, limitando-se a reconhecer que ele cometeu "erros". Mas não basta ser anti-stalinista, é preciso ser contra o próprio leninismo, uma vez que o modelo autoritario desenvolvido por Lenin e demais revolucionários russos foi responsável pelo surgimento do stalinismo. Por isso é preciso uma refundação da esquerda socialista, para que livre da herança bolchevique, se possa realmente defender o socialismo democrático.

Voltando a essa entrevista com o historiador marxista Jacob Gorender. As perguntas se basearam principalmente sobre o XX Congresso do Partido Comunista da URSS, onde Nikita Kruschev denunciou os crimes de Stalin. Mas também teve perguntas sobre a questão do marxismo nos dias atuais, e é isso que nos interessa.

Pergunta: O senhor já disse que o problema de O Capital, de Karl Marx, é ser uma obra feita só de certezas. Uma obra sem direito a dúvidas...

Jacob Gorender: "Marx era um determinista utópico. Queria algo que a realidade não confirmou. Previu que, com o avanço das forças produtivas, a humanidade gozaria de fartura plena. A produtividade não teria limites. Não é verdade. Apesar dos avanços tecnológicos, há o limite ecológico para a produtividade. Não se pode crescer a ponto de deteriorar o ambiente em que o homem vive. Isso Marx não pensou. Outra previsão equivocada foi a do desaparecimento do Estado. Como não haveria mais classes sociais na evolução marxista, então o Estado seria desnecessário. Haveria uma espécie de autogoverno das comunidades. Impossível. As sociedades necessitam do Estado, até porque há prioridades a definir. Que meios de transportes usar? Qual a produção industrial? Serviços de saúde, educação, quem vai decidir sobre isso? Só pode ser o Estado, democrático e de direito."

Pergunta: Marx apostou todas as fichas da inevitabilidade do processo?

Jacob Gorender: "Sim, era um fatalista. Não levou em conta que a história humana é cheia de incertezas, de viradas, não pode ser totalmente previsível. O sistema só funciona de maneira previsível enquanto sistema. Quando as coisas começam a falhar, há desobediência, sublevações, corrupção, e o sistema não funciona. E tudo é tão imprevisível. Elementos da teoria da relatividade de Einstein, a psicanálise de Freud e a Teoria do Caos deveriam ter sido incorporados pelo pensamento marxista."

Pergunta: O senhor lutou por ilusões?

Jacob Gorender: "Em parte. Porque a luta que travei, com tantas outras pessoas que sofreram até mais do que eu, permitiu ao capitalismo se tornar mais flexível, mais democrático, menos opressivo. Obrigou-o a concessões. Fez com que ele deixasse de ser tão selvagem para se humanizar. Antes não havia legislação trabalhista, o operário ganhava uma miséria, não havia férias remuneradas e todos esses direitos conquistados ao longo do tempo. A nossa luta também contribuiu para que um número maior de pessoas estudasse. Cometemos erros, experimentamos sacrifícios, mas não foi em vão. O mundo de hoje é cheio de defeitos. Mas, sem os marxistas, seria pior."

A esquerda precisa fazer essa autocritica que Jacob Gorender e outros marxistas fizeram, assumindo a defesa de um socialismo radicalmente democrático, sem qualquer vinculo com a herança bolchevique. Um socialismo não dogmatico, que faça inclusive a revisão do próprio marxismo, atualizando o socialismo para a realidade do século XXI.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

Por uma nova esquerda - entrevista com Ruy Fausto

"É preciso repensar a definição do homem. A visão clássica era idílica demais e já não serve, mas a definição anti-humanista do homem serve ainda menos"



Aos 75 anos, o filósofo Ruy Fausto lamenta não ter tempo para realizar seus projetos. O autor de "Marx: Lógica e Política" (Editora 34) e "Dialética Marxista, Dialética Hegeliana" (Paz e Terra) luta por uma refundação do pensamento de esquerda. O primeiro compromisso da esquerda deve ser com a democracia e o segundo, com o combate à corrupção. Só depois vem a crítica ao capitalismo, defende. Neste tempo em que tanto o comunismo quanto o neoliberalismo entraram em crise, o tempo é de balanço.

Para promover suas ideias de uma nova esquerda, Ruy Fausto prepara o lançamento de uma revista eletrônica. O nome será "Fevereiro", em homenagem às revoluções de 1848, à primeira revolução russa de 1917 e ao levante de Kronstadt (1921), quando marinheiros e operários foram massacrados pelos bolcheviques. "É claro que é uma provocação", afirma. "Já que tem tanta Outubro por aí, esta é 'Fevereiro'."

Nascido em São Paulo e irmão do historiador Boris Fausto, o filósofo foi militante trotskista na juventude, antes de se exilar em Paris, em 1968. Na França, terminou sua tese e lecionou na Universidade Paris 8. Professor emérito da USP, Fausto se entusiasma com o crescimento dos partidos verdes na Europa e prevê catástrofes ecológicas que obrigarão a humanidade a repensar o capitalismo. "Estou na posição cômoda de quem não vai viver para ver isso, mas vocês, jovens, terão de enfrentar o problema."

Ex-petista desde o escândalo do mensalão, Fausto avalia que, em matéria econômica, a era Lula manteve-se na ortodoxia, mas ao mesmo tempo o presidente da República tomou medidas favoráveis aos mais pobres. "Seu mérito é jamais ter ameaçado a democracia", comenta. A seguir, os principais trechos da entrevista concedida em Paris.

O senhor rompeu como PT logo no começo da crise do mensalão. Hoje, que a "era Lula" está acabando, como avalia o período, do ponto de vista da história?

Ruy Fausto: É importante que se tenha eleito para a Presidência um líder sindical com a história de Lula. Ele fez um governo curioso: em matéria econômica manteve-se na ortodoxia, mas ao mesmo tempo tomou medidas favoráveis aos mais pobres. Seu mérito é jamais ter ameaçado a democracia. É nessa base que se assenta seu prestígio no exterior. Acho que se fizeram coisas positivas no governo Lula. Creio que houve avanços em matéria de educação, e o Bolsa Família, mesmo se é uma medida emergencial, dá algum respiro à população mais pobre.

A economia avança, mas os problemas continuam sendo enormes: violência, caos urbano, desigualdade. Importante é que se impõe a ideia de que devemos resolver o problema do conjunto da população. Sob o governo anterior, dizia-se que "a situação econômica" permitia resolver o problema de uma parte da camada mais pobre, mas as outras... Isso acabou. A exigência de justiça social, pelo menos como ideia, se impõe. Mas o PT acabou mergulhando no pior da política brasileira. E houve até o risco de ter um José Dirceu na Presidência.


A decepção é com o PT?


Fausto: Ainda penso que o PT tem interesse. Lá existe gente boa e também, digamos, algumas figuras razoáveis, com gente muito, muito ruim. Aprecio o Fernando Haddad [ministro da Educação], que faz um trabalho sério, nos limites do possível. E se um dia conseguíssemos lançar alguém como ele como candidato à Presidência, a partir de um movimento de base não comprometido demais com o PT? Não se subestimem essas jogadas históricas: seja qual for o futuro de seu governo, o caso Obama mostra como o improvável pode se efetuar.

Afinal, qual é o balanço dessa esquerda no poder?

Fausto: No início, a prudência de tipo ortodoxo era necessária, mas eles poderiam ter avançado depois. E não me agrada a política externa. Não é possível fazer o elogio do escândalo sangrento em que culminaram as eleições iranianas. O governo Lula professa, apesar de tudo, um terceiro-mundismo rançoso, como se vê por sua atitude em relação a Fidel Castro e Hugo Chávez. É hora de acabar com isso, o que não significa, muito pelo contrário, deixar de criticar o capitalismo. Já o problema da corrupção foi esvaziado com o argumento banal da crítica do "moralismo". Numa certa esquerda, como a solução é o comunismo triunfante, a corrupção aparece como epifenômeno do capitalismo. Mas quando cai a ideia do comunismo, a luta contra a corrupção aparece como um objetivo que, para usar a velha linguagem, se tornou estratégico. É tão essencial quanto a democracia. E vamos cutucar o capitalismo, pensar em como enfrentá-lo. É questão de invenção, o que é ótimo. Superar ideias antigas é, em primeiro lugar, um projeto intelectual, mas também é política.

Depois de 1989, a esquerda ficou abalada; depois de 2008, quem se abalou foi a direita. Há uma esquerda pronta para responder às questões de hoje?

Fausto: A derrota de 1989 não foi da esquerda, mas do chamado "comunismo". Para entender isso, é preciso refazer a história do bolchevismo. O que caiu - embora tivesse mudado, em alguma medida - era trabalho escravo, genocídio, despotismo. Outubro de 1917 foi algo muito duvidoso. Em três meses, todos, até os operários, estavam contra os bolcheviques. Por três anos, houve massacres, greves, revoltas, até que veio o levante de Kronstadt. A explicação pelas "condições" não explica quase nada. Com a queda do bolchevismo, a esquerda se livrou de uma hipoteca insustentável. Fala-se da perda de "conquistas". Não houve conquistas; houve alguns avanços, mas fragilizados pelo quadro totalitário e pagos ao preço de regressões históricas enormes, que redundaram num déficit histórico global imenso.

A esquerda está numa boa posição para dar as respostas?

Fausto: As dificuldades são grandes, principalmente em termos de meios. Mas os fins não são obscuros e utópicos como eram, digamos, há 40 anos. A primeira coisa a saber é que um projeto de sociedade é preciso. Antigamente, supunha-se que não era nem se devia formulá-lo, sob pena de utopismo: a "história" se encarregava, e já teria se encarregado, disso. Hoje, sabemos que a "história" não se encarrega de nada, em geral, e quando se "encarrega" pode vir o pior. Em matéria de projetos, não há mil alternativas. Sim aos direitos democráticos, ao Estado, ao direito e também à propriedade privada. Resta o problema mais difícil: o capitalismo. É preciso distinguir - Karl Marx [1818-1883] o fazia, mas de outro jeito - o capitalismo, de um lado, e a existência de mercadoria e dinheiro, de outro. É muito problemático, como ser e como dever ser, propor o fim da mercadoria e do dinheiro. Mas ao mesmo tempo é duvidoso que o capitalismo, busca frenética do lucro, subsista eternamente.

O que o senhor propõe concretamente?

Fausto: Queremos uma sociedade democrática, muito democrática. Quanta escória antidemocrática subsiste nas sociedades ocidentais! Depois, uma sociedade muito igualitária, mas não absolutamente igualitária. Terceiro, uma sociedade em que, havendo mercadoria e dinheiro, o capital seja freado de algum modo. Para isso, existem alguns meios: imposto de renda realmente diferenciado, desenvolvimento de cooperativas, ação do Estado nos setores fundamentais. Além do que se pode fazer no plano internacional. É preciso tirar da cabeça a ideia nefasta de que um projeto político de esquerda, nos seus objetivos finais pelo menos, vá fazer descer o céu sobre a Terra. Quem quer fazê-lo acaba descendo ao inferno.

O Hegel [1770-1831] maduro tem razão, a seu modo, quando deixa de pôr o absoluto na cidade. Também Platão, quando passa da República às Leis. Quem quer o infinito, ou procura absolutos, que pesquise por outros lados que não os da política: por exemplo, na arte ou no amor. Mas há ainda dois problemas: um é o Terceiro Mundo, com sua carga de miséria e também, às vezes, de fanatismo fundamentalista.

O outro são as questões ecológicas. Nisso, vejo uma dupla ameaça: crônica, de certo modo, com o uso multiplicado das energias fósseis; e aguda, com a possibilidade de uma catástrofe nuclear. Mas como intervir no mundo atual? E aí aparecem outras questões: a emergência da China, por exemplo. Pouca gente na esquerda e na direita se preocupa suficientemente com o fato de que a possível futura maior economia do mundo seja um país semitotalitário. Mas a primeira coisa para enfrentar esses desafios, condição necessária ainda que insuficiente, é repensar os fundamentos da política da esquerda.

Há um vazio no pensamento da esquerda?

Fausto: De certo modo. Mas não vejo aí motivo de desespero. O pensamento universitário é, em geral, impotente para enfrentar esses desafios. E é também impotente o pensamento daqueles que professam um revolucionarismo de outro tempo, como se o século 20 fosse um parêntese a ser eliminado. Isso é comum entre economistas, filósofos e cientistas políticos de extrema esquerda. Eu os convidaria a abrir o livro do século 20 e não nas páginas em que se fala do capitalismo (democrático ou autoritário), mas nas que falam do seu outro. Há quase cem anos de literatura histórica e crítica a respeito. Quanto aos autores que, num plano mais geral, poderiam nos servir como ponto de partida, citaria o [Theodor] Adorno [1903-1969] da "Dialética Negativa", [Cornelius] Castoriadis [1903-1997] certamente e também Claude Lefort.

Por onde passa a renovação do pensamento de esquerda?

Fausto: Primeiro, por um banho de história. É impossível fazer qualquer coisa enquanto a maioria acreditar na versão leninista da história do século 20, um pouco menos ruim do que a stalinista, mas hoje muito mais nefasta, já que na mitologia stalinista quase ninguém mais acredita. A segunda coisa é a crítica do anti-humanismo renascente, crítica que tem de ser feita fora dos quadros do humanismo. A terceira é uma teoria crítica das formas políticas. A universidade, em ampla medida, passa ao largo desse programa, principalmente no Brasil.

O senhor critica o anti-humanismo dos filósofos Alain Badiou e Slavoj Zizek. Mas o humanismo clássico foi apontado como responsável pelas atrocidades do século XX. O que podemos contrapor ao anti-humanismo hoje?

Fausto: O primeiro problema é definir o humanismo: ele aparece como recusa da violência e como filosofia dos direitos do homem. A partir de Marx (não sou marxista), se pôde ter a ideia, que vem, em última instância, de Hegel, de que o humanismo pode cair no seu contrário (num mundo de violência, propor a não violência implica violência), mas que o anti-humanismo não é solução. O humanismo fundamenta a ética (o que, apesar das aparências, tem suas dificuldades); o anti-humanismo elimina todo fundamento, o que é ainda mais problemático. Mas é preciso ir além. As dificuldades do esquema clássico são duas. Primeiro, é preciso repensar as relações entre meios e fins à luz da história contemporânea. Depois, é preciso repensar a definição do homem. A visão clássica era idílica demais e já não serve, mas a definição anti-humanista do homem serve ainda menos.

E quanto ao humanismo como dominação?

Fausto: Isso é fruto de uma identificação entre humanismo de um lado, e visão prometeica-cartesiana de outro. Com isso, é fácil passar da dominação da natureza à dominação do homem, daí o humanismo ser responsabilizado pelos horrores do século 20. Essa tese, muito difundida, que às vezes põe no banco dos réus até o kantismo, é falsa. Houve duas filosofias expressamente humanistas na história: a de [Ludwig] Feuerbach [1804-1872] e a do jovem Marx (o velho Marx é outra coisa). Neles, não há prometeísmo nem dominação da natureza, mas um discurso humanista e também naturalista, muito marcado por Schiller. Anuncia, à sua maneira, o discurso ecologista. Para além do problema histórico, é fácil perceber que os totalitarismos são ao mesmo tempo prometeicos e anti-humanistas. Infelizmente, não posso desenvolver muito, aqui, este tema.

O iluminismo, então, não é humanista?

Fausto: Há muita coisa por trás da ideia de "iluminismo" que precisa ser desconstruída. São ao menos três elementos: razão, progresso e direitos do homem. Esses três elementos não funcionam (e não funcionaram, historicamente) do mesmo modo.

Como podemos conceber o homem?

Fausto: É preciso pensá-lo como repositório de possíveis. Uma "antropologia dialética", como diziam os frankfurtianos (tão mal utilizados hoje, especialmente no Brasil). Nem o humanismo nem o anti-humanismo, nem mesmo a recusa dos dois nos termos da dialética clássica, nos levam a um bom resultado.

Refundar o socialismo


O historiador marxista Jacob Gorender, afirmou em entrevista publicada na revista Teoria e Debate nº 43, que "o conceito de ditadura se presta a tantas confusões, que não vale a pena insistir nele". O cientista político Carlos Nelson Coutinho, um dos mais importantes intelectuais marxistas de nosso país, afirmou que "ditadura do proletariado foi um dos termos menos felizes de Marx", o que concordo plenamente. A democracia é um valor universal, a esquerda socialista precisa se conscientizar disso e assumir essa verdade.

O socialismo precisa ser refundado, tendo por base a defesa da democracia como valor universal. A história nos mostrou que igualdade sem democracia é uma miragem. Sempre que a liberdade é sacrificada, privilégios velhos e novos ganham força. A igualdade é irmã gemêa da liberdade.

Homens como Alexander Dubcek, Salvador Allende, Enrico Berlinguer, Chico Mendes, e tantos outros, enriqueceram o campo da esquerda ao defender o socialismo com liberdade e democracia.

A refundação do socialismo exige o abandono de toda herança oriunda da tradição bolchevique, assim como a revisão do próprio pensamento marxista. A esquerda não pode ser dogmatica, a história mostrou a existência de equívocos no próprio pensamento de Marx e de Engels, como demonstra o historiador Jacob Gorender em "Marxismo sem utopia".

"Marx era um determinista utópico. Queria algo que a realidade não confirmou. Previu que, com o avanço das forças produtivas, a humanidade gozaria de fartura plena. A produtividade não teria limites. Não é verdade. Apesar dos avanços tecnológicos, há o limite ecológico para a produtividade. Não se pode crescer a ponto de deteriorar o ambiente em que o homem vive. Isso Marx não pensou. Outra previsão equivocada foi a do desaparecimento do Estado. Como não haveria mais classes sociais na evolução marxista, então o Estado seria desnecessário. Haveria uma espécie de autogoverno das comunidades. Impossível. As sociedades necessitam do Estado, até porque há prioridades a definir. Que meios de transportes usar? Qual a produção industrial? Serviços de saúde, educação, quem vai decidir sobre isso? Só pode ser o Estado, democrático e de direito." (Jacob Gorender; em entrevista publicada no jornal O Estado de São Paulo, edição de 19/02/2006) 


Como socialistas precisamos estar abertos aos novos paradigmas que a história nos coloca, abrindo mão do dogmatismo, que havia transformado a filosofia marxista em uma espécie de religião.

A IMPORTANCIA DA POLÍTICA

"No universo da política, que tanto interfere em nossa vida cotidiana, as palavras andam perdendo o significado. Falsidades, mentiras e demagogia habitam o “pântano enganoso das bocas” de muitos dos que foram eleitos para representar a população: vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores e presidente da República. Devíamos andar com um aparelhinho que, a qualquer afirmação nebulosa ou pouco compreensível, acionasse uma gravação pedindo explicações: “mas o que Vossa Excelência quer mesmo dizer com isso?” A solicitação de esclarecimentos poderia se estender a autoridades do Judiciário que vendem sentenças e enriquecem ilicitamente... (...) Os politiqueiros e ladrões do dinheiro público, que “entram na política” (bancados por altos financiamentos de campanha) para conquistar prestígio, poder, aumento irregular de patrimônio e reprodução de seus próprios mandatos, têm um sonho dourado: que cada vez mais gente se desinteresse por suas atividades. Assim eles podem reinar sozinhos, sem incômodos. Uma máxima dos tempos atuais é... despolitizar a política, torná-la um assunto de entendidos, ou apenas de entediados, distantes das coisas boas da vida. Esta deseducação tem funcionado: na democracia brasileira, cujo direito de voto em todas as instâncias foi duramente conquistado por gerações de cidadãos dedicados, o desinteresse e o desencanto são crescentes. Virou rotina o “deixa pra lá que nada adianta”. Essa alienação induzida nos levará à ruína!" (Chico Alencar - deputado federal pelo PSOL/RJ)

A INFÂNCIA DE UM CHEFE

A esquerda parece não ver nenhuma relação entre as concepções teórico-políticas de Lenin e toda evolução posterior das experiências socialistas na Rússia, no Leste Europeu e no mundo. Não fosse o maldito Stalin, certamente estaríamos no paraíso socialista.

Ora, ninguém pode subestimar o papel nefasto que Stalin cumpriu na história, mas atribuir a ele esta importância é, no mínimo, um simplismo que exige uma grande dose de boa vontade para convencer a nós mesmos. Stalin jamais poderia ter sido o que foi se a maioria dos comunistas na Rússia e no mundo não o tivessem apoiado entusiasticamente. E todos eram comunistas teoricamente referenciados no marxismo-leninismo (ou não?).

Mesmo aqueles que se opuseram ao stalinismo, como foi o caso de Leon Trotsky, na verdade defendiam o mesmo modelo totalitario e burocratico de socialismo.

"A discussão em torno do papel do Estado, sua relação com os sindicatos, a autonomia da classe operária nada disso fora palavrório oco. Lênin, com a NEP, propunha agora um outro caminho, com maior liberdade para a cidade e o campo, recuperando o papel do mercado, compreendendo que o capitalismo ainda tinha fôlego para se desenvolver numa sociedade que ele acreditava estar caminhando para o socialismo. Trotsky tinha outra visão, que mais tarde, ironicamente, será integralmente adotada por seu mais visceral inimigo, Stalin. Está certo Deutscher quando afirma não haver praticamente nenhum aspecto do programa sugerido por Trotsky em 1920-21 que Stalin não tenha usado durante a industrialização acelerada da década de 1930. Adotou o recrutamento forçado, subordinou os sindicatos, estimulou a disputa de produção entre os trabalhadores, na linha do taylorismo soviético defendido por Trotsky."
(Emiliano José; em "Trotsky: do pomar para a Revolução")


A crise do socialismo é bem mais profunda do que a maioria da esquerda admite. Assumir a gravidade desta crise é o primeiro passo necessário para superarmos o impasse.
O que fracassou no Leste Europeu, e nos outros países do chamado 'socialismo real', foi um determinado tipo de socialismo, cujos pressupostos teórico-filosóficos estavam contidos no marxismo-leninismo.

Os graves erros do modelo socialista desenvolvido por Lenin

É verdade que o stalinismo teve desvios em relação às concepções leninistas. Mas o que deve ser discutido é se as concepções de Lenin eram corretas, se não permitiram o desenvolvimento desses desvios.

Dentro do marxismo clássico - e também em Lenin -, a classe operária é portadora do universal, porque quando se emancipa, está emancipando o conjunto da sociedade. O problema é que Lenin não acredita na capacidade da classe operária para exercer o poder na fase inicial de construção do socialismo. Os trabalhadores, segundo Lenin, "não se desembaraçarão facilmente de seus preconceitos pequeno-burgueses", precisando ser "reeducados sobre a base da ditadura do proletariado". Este poder deveria ser exercido pela vanguarda da classe - já livre da ideologia burguesa -, isto é, pelo partido desta classe. Assim, a fórmula leninista da ditadura do proletariado acaba resultando na ditadura do partido do proletariado, pois os interesses históricos de partido e classe são os mesmos, com a diferença de que o conjunto da classe ainda não descobriu sua "missão histórica", a ser revelada pelo partido.

Neste ponto, é importante frisar, não houve um desvio do stalinismo em relação ao leninismo, mas sim sua continuidade, com todos os agravantes da personalidade autoritária de Stalin.
O stalinismo não foi resultado de nenhuma "contra-revolução burocratica", e sim resultado desse grave erro existente no modelo marxista-leninista.

O regime bolchevique foi pré-totalitario, pois plantou as sementes que deram origem ao stalinismo, até porque se antes da revolução Lenin pregava "todo poder aos sovietes", após a revolução estabeleceu na verdade o "todo poder ao partido comunista".

O caráter anti-democrático do bolchevismo pode ser constatado nas palavras de Leon Trotsky, um dos principais revolucionários bolcheviques, que desde 1920 já defendia a militarização do trabalho e a estatização dos sindicatos.

“A verdade é que, em regime socialista, não haverá aparelho de coerção, não haverá Estado. O Estado se dissolverá na comuna de produção e de consumo. Entretanto, o caminho do socialismo passa pela tensão mais alta da estatização. E é exatamente este período que atravessamos. Assim como um lampião, antes de se apagar, brilha com uma flama mais viva, o Estado, antes de desaparecer, reveste a forma da ditadura do proletariado, a forma mais impiedosa de governo que existe, um governo que envolve, de maneira autoritária, a vida de todos os cidadãos. É essa bagatela, esse pequeno grau na história que [...] o menchevismo não viu, e foi isto o que lhe fez tropeçar”. (Leon Trotsky; em "Terrorismo e Comunismo")

Ao afirmar que a ditadura do proletariado é a forma mais impiedosa de governo que existe, Trotsky está legitimando os crimes promovidos durante o chamado "terror vermelho", e pior, dando sinal verde para o terror ainda mais criminoso e aberrante da era stalinista, até porque para voltar à imagem, e se o lampião em vez de se apagar não só continuasse aceso mas pusesse fogo no mundo? Foi o que aconteceu com o stalinismo. Não é portanto por coincidencia que enquanto comandante do Exército Vermelho, Trotsky ordenou em fevereiro de 1921, a repressão brutal contra o levante socialista do soviet de Kronstadt.

Ao contrário de Lenin, Trotsky e dos bolcheviques, a marxista Rosa Luxemburgo deixou claro em "A Revolução Russa", que ditadura do proletariado não é a ausência de democracia, muito menos obra de uma minoria agindo em nome da classe trabalhadora.

"A democracia socialista começa com a destruição da dominação de classe e a construção do socialismo. (...) Ela nada mais é que a ditadura do proletariado. Perfeitamente: ditadura! Mas esta ditadura consiste na maneira de aplicar a democracia, não na sua supressão. (...) esta ditadura precisa ser obra da classe e não de uma pequena minoria que dirige em nome da classe". (Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")

Os comunistas insistem em se fazer de cegos para não enxergar os crimes promovidos durante a fase anterior ao stalinismo, crimes que também precisam ser condenados. Em "Somos todos pós-modernos?", Frei Betto pergunta "quem diria que a revolução russa terminaria em gulags?" Oras, quem conhece a história da Revolução Russa, sabe muito bem que os gulags surgiram por iniciativa de Lenin, ao autorizar a criação dos primeiros campos de concentação na Europa já em 1918, para aqueles que não compartilhavam suas idéias.

"Os sovietes funcionaram com alguma liberdade só até junho de 1918. Os jornais socialistas de oposição não duram muito mais do que isso. Os campos de trabalho forçado existem desde 1918-1919. Em 1918, e depois em 1920-1921, há greves importantes, reprimidas violentamente pelo regime." (Ruy Fausto; "Em Torno da Pré-História Intelectual do Totalitarismo Igualitarista)

O historiador russo Dmitri Volkogonov afirma que a idéia do sistema de campos de concentração (os Gulags), e os terríves expurgos dos anos 30, são normalmente associados ao nome de Stalin, mas o verdadeiro "pai" dos campos de concentração bolcheviques, as execuções, e o terror em massa, era Lenin. Nos antecedentes do terror implantado por Lenin, se torna fácil entender os métodos inquisitoriais de Stalin, o qual era capaz de executar alguém apenas baseado em suposições. Citando o filósofo marxista Ruy Fausto: "Não que eu suponha uma simples continuidade entre bolchevismo e stalinismo. Mas afirmo sim que o totalitarismo stalinista é impensável sem o bolchevismo, e que há linhas reais de continuidade entre os dois". (RUY FAUSTO; "EM TORNO DA PRÉ-HISTÓRIA INTELECTUAL DO TOTALITARISMO IGUALITARISTA")


Leia o texto abaixo e reflita


A INFÂNCIA DE UM CHEFE

Ruy Fausto*

Simon Sebag Montefiore que, com "A Corte do Czar Vermelho" [Cia. das Letras], espécie de análise histórico-etnológica de Stálin, havia provocado uma pequena revolução na "stalinologia" e, em certa medida, na sovietologia em geral, lança agora este "Jovem Stálin", que se ocupa da vida do "pai dos povos" até a sua participação no primeiro governo bolchevique, em novembro de 1917.

Como o livro anterior, este é o resultado de um longo trabalho: quase dez anos de investigação em 23 cidades e nove países, incluindo pesquisas em arquivos recém-abertos em Moscou e nas cidades georgianas de Tbilisi e Batumi, além da utilização de memórias, em boa parte inéditas, de contemporâneos mais ou menos obscuros.

A primeira reação diante de tal tipo de trabalho é de ceticismo. Esse mergulho na vida do tirano poderia levar a resultados históricos de alguma relevância? Na realidade, o livro é importante. Sem dúvida, pode-se dizer que ele não inova propriamente, "apenas" radicaliza o que já fora revelado pelo livro anterior e por textos de outros autores. Só que essa radicalização vai longe. Há nele três elementos, de interesse crescente.

Em primeiro lugar, para além do que já se sabia por meio de "A Corte do Czar Vermelho", o leitor descobre um Stálin com qualidades intelectuais-artísticas bem superiores às que poderia sugerir o retrato que dele faz Trótski.

O jovem Stálin não só canta bem e é um grande leitor, principalmente de literatura e história, mas é um poeta georgiano de qualidade apreciável (os poemas em tradução, que o volume traz, parecem confirmar esse julgamento).

O Stálin poeta foi incluído em antologias da poesia georgiana do início do século e, segundo Montefiore, ele é um "clássico georgiano menor". O futuro "pai dos povos" "foi admirado na Geórgia como poeta antes de ser conhecido como revolucionário".

Montefiore diz também, "en passant", que Stálin lia Platão no original grego (língua que deve ter aprendido no seminário). Ele não foi um indivíduo inculto; mesmo o epíteto de semiculto talvez seja insuficiente. Stálin foi um intelectual de estilo provinciano (não conseguiu dominar as línguas modernas fora o russo, tinha gostos muito convencionais em arte etc.). Porém, se Stálin foi mais intelectual do que se supunha, ele também foi mais bandido… Suas atividades de "expropriador" são conhecidas, principalmente o famoso ataque às "carruagens pagadoras" do Banco do Estado em Tiflis, em junho de 1907, fato noticiado com destaque pela imprensa mundial da época.

O assalto de Tiflis, planejado por Stálin, mas do qual ele provavelmente não participou de forma direta, foi executada por um grupo de homens e mulheres dirigido por Kamo, um bandido sanguinário e psicopata, totalmente fiel a Stálin. Segundo os arquivos da polícia secreta czarista, nele morreram mais ou menos 40 pessoas. Stálin se comportava como um verdadeiro chefe de bando, mesmo se só guardasse para si a glória e o poder (que sempre foram seus maiores objetivos): o dinheiro ia para os cofres da organização bolchevista.

Stálin planejou e dirigiu outras ações violentas, incluindo talvez um ato de pirataria contra um navio no mar Negro, arrancou dinheiro de comerciantes e industriais, sob ameaça de morte ou de incêndio de propriedades, e mandou matar espiões (segundo alguns, liqüidou também gente que simplesmente não lhe inspirava confiança). Assim, nas palavras do autor, "Stálin era uma rara combinação: ao mesmo tempo intelectual e assassino".

É por causa dessa dupla condição - esse é o ponto importante - que ele caiu nas boas graças de Lênin. Também aqui os fatos, em grande parte pelo menos, já eram conhecidos, mas Montefiore mostra bem o quanto Lênin apreciava Stálin, e como iria promover sua ascensão na hierarquia, depois da cisão formal do partido bolchevique (1912).

"Esse é exatamente o tipo de pessoa de que necessitamos", diz Lênin sobre Stálin, nos anos 1910, respondendo às objeções de um menchevique. Numa carta a Gorki - esta bem conhecida -, Lênin se refere a Stálin como o seu "maravilhoso georgiano". Às vésperas do quinto Congresso da Social-Democracia russa, em Londres, em abril-maio de 1907, Lênin encontra Stálin em Berlim.

Lá, eles conversam sobre a iminente operação de Tiflis (!) e sobre os meios para remeter o dinheiro. No congresso, onde, por proposta dos mencheviques, as expropriações são proibidas pelo partido, sob pena de expulsão, Lênin afirma não conhecer Stálin.

Em 1912, junto com Zinoviev, Lênin propõe que Stálin seja cooptado para o Comitê Central bolchevique. E, em 1922, assegura, com Kamenev, a nomeação de Stálin como secretário-geral do Comitê Central.

Se as coisas se passaram assim, é preciso concluir - não, como pretende o autor, que o stalinismo é simples continuação do leninismo: as diferenças entre os dois não desaparecem apesar de tudo isso - que o leninismo "preparou a cama" para o stalinismo.

Meios e fins

Lênin sempre deixou claro que não tinha maiores problemas com o uso dos meios, desde que os objetivos fossem revolucionários. E, assim, não hesitou em apelar para o banditismo como força auxiliar. E, até mais do que isso, a serviço do grupo e, depois, do partido bolchevique.

Quando se tenta idealizar "o último combate de Lênin" - a ruptura com Stálin, em 1923, e a tentativa de afastá-lo da Secretaria Geral -, é impossível não comentar: pois fora ele mesmo, Lênin, que introduzira o lobo (não propriamente entre "cordeiros", mas…).

A refletir. Quando jovem, Fidel Castro foi uma espécie de gângster, e a última biografia de Mao Tse-tung revela um personagem que tem muito a ver com o banditismo. Que o stalinismo tenha certa afinidade com o gangsterismo não é muito surpreendente nem representa, a rigor, uma informação nova, nos dias de hoje.

Mas o que, sim, deveria ser matéria de reflexão é o uso que o leninismo fez das práticas do gangsterismo. Essa atitude não foi acidental. Ela estava enraizada nessa mistura de neojacobinismo, neonarodnikismo e fria racionalidade capitalista, que é o leninismo. Os resultados, conhecemos.

Infelizmente, como os stalinistas outrora, os nossos neoleninistas preferem não enxergar o que é desagradável. A confusão teórica é o preço dessa política de avestruz.

*RUY FAUSTO é filósofo, professor emérito da USP e lecionou na Universidade de Paris 8. É autor de "Marx - Lógica e Política" (ed. 34).

Rage Against The Machine - Sleep Now In The Fire (live)



"A liberdade apenas para os partidários do governo, só para os membros de um partido - por numerosos que sejam - não é a liberdade. A liberdade é sempre, pelo menos, a liberdade do que pensa de outra forma (...). Sem eleições gerais, sem uma liberdade de imprensa e de reunião ilimitada, sem uma luta de opinião livre, a vida acaba em todas as instituições públicas, vegeta e a burocracia se torna o único elemento ativo. [...] Se estabelece assim uma ditadura, mas não a ditadura do proletariado: a ditadura de um punhado de chefes políticos, isto é uma ditadura no sentido burguês". (Rosa Luxemburgo; em "A Revolução Russa")

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Verde e vermelho

Verde e vermelho 

Jung Mo Sung * 

Uma das características do capitalismo e das empresas capitalistas é a capacidade de se adaptar aos novos valores da sociedade produzindo novos discursos, novos slogans, novas imagens e novos produtos. Mudar sempre e tudo o que for necessário para aumentar ou manter a acumulação do capital.

Quando a sociedade civil começou valorizar a ética e exigir posturas mais éticas das empresas, foram criados programas, cursos e discursos sobre ética nas empresas. Assim também, quando o problema do meio ambiente se tornou uma questão pública mundial, até empresas petrolíferas começaram fazer propaganda pelo mundo afora falando dos seus projetos de proteção ambiental. A preocupação (aparente ou real) pelo meio ambiente faz parte hoje do "cardápio" na geração de lucro das grandes empresas. 

Os discursos genéricos pela preservação do meio ambiente estão sendo acompanhados cada vez mais pela criação e produção de "produtos verdes" (que inclui bens de consumo, máquinas, edifícios, alimentos etc.). Produtos que não agridem, ou prejudicam menos, o meio ambiente e a saúde dos consumidores e da população em geral. É a resposta das empresas frente a novas demandas dos consumidores e do aumento da consciência ecológica da sociedade. "Verde" está se tornando uma moda e agrega valor á mercadoria e à marca. 

Contudo, não podemos nos esquecer que o mundo econômico pode se tornar completamente verde, mas isso não significará necessariamente que esse processo solucionará os problemas sociais, como a brutal desigualdade social e a pobreza. Edifícios e residências "verdes" podem ser construídos de modo ambientalmente correto, assim como celulares sofisticados "verdes" fabricados com materiais recicláveis e baterias não prejudiciais ao meio ambiente, alimentos produzidos organicamente, sem agrotóxicos e outros produtos químicos, e até Ferraris "verdes", mas isso por si não acabará com a exclusão social e nem tirará da pobreza bilhões de pessoas espalhadas pelo mundo. 

Eu não estou aqui desvalorizando a luta ambiental e a importância da produção de produtos verdes. Muito pelo contrário. O que eu quero chamar atenção é a capacidade do capitalismo enquanto sistema econômico-social e das empresas capitalistas de cooptarem as bandeiras e os valores dos movimentos sociais e os utilizarem para a manutenção do capitalismo e para maior acumulação do capital.  E uma das formas atuais disso é o foco exclusivo na questão ambiental e no produto verde. Ao dar ênfase exclusiva à questão ecológica, tira da cena questões e problemas que o sistema capitalista não está interessado e nem tem muita capacidade de solucionar: o problema social. 

É claro que precisamos preservar as condições ambientais que permitem a vida dos seres humanos e das outras espécies. Mas se nos deixarmos levar pela "armadilha" do sistema e reduzirmos a luta à questão ambiental, poderemos viver em um mundo cheio de produtos verdes, em um ambiente ecológico sustentável, cercados de centenas de milhões ou de bilhões de pessoas pobres excluídas desse consumo verde e das condições dignas de vida. 

A bandeira vermelha simbolizou e ainda para muitos simboliza a luta pela justiça social. A verde, a luta pela preservação do meio ambiente e por um estilo de vida mais compatível com a natureza. Muitos de nós ainda pensamos dentro e a partir da racionalidade moderna que sempre pede a definição de "a" causa do problema, "a" luta, "a" proposta, como se a realidade fosse regida por um único princípio e que as nossas lutas também devessem ser guiadas por uma única bandeira. Para quem pensa assim, seria preciso escolher "a" bandeira, a verde ou a vermelha.  

Eu penso que devemos tomar cuidado para não cair na armadilha do capitalismo de reduzir tudo à questão "verde", nem reproduzir o erro da razão moderna de definir uma única bandeira de luta ou pensar que há uma única ou uma causa central para os problemas tão complexos que enfrentamos hoje. É preciso unir o "vermelho" com "verde", o "verde" com o "vermelho". Só que, para isso, não basta justapor o discurso ecológico com o social. É preciso formular ou utilizar um novo tipo de racionalidade, novas estratégias de lutas e de um novo modelo de desenvolvimento que seja social e ecologicamente sustentável. 

E para as comunidades e grupos religiosos (de todas as confissões e crenças) comprometidos com esse desafio há o desafio de propor e viver uma espiritualidade que revele e permita, no interior da luta colorida de "verde-vermelho", a experiência do divino que nos humaniza. 

*Jung Mo Sung é coord. Pós-Graduação em Ciências da Religião, Universidade Metodista de São Paulo. Autor de "Cristianismo de libertação: espiritualidade e luta social".